Quiet quitting: o espaço que demarcamos e o tempo que cedemos

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A boa literatura deixa-nos personagens enigmáticas e intemporais. Em meados do século XIX, Herman Melville apresentou-nos um Mr. Bartleby difícil de decifrar. Contratado como escrivão para o gabinete de um advogado em Nova Iorque, executava de forma primorosa a sua tarefa, mas negava-se a alargar as suas competências. Perante novas solicitações, esquivava-se com a subtileza do “I would prefer not to”.
Mais recentemente, no rescaldo da digitalização das nossas vidas e do teletrabalho que se expandiu com a pandemia, surge o “quiet quitting”, uma discreta atitude defensiva que circunscreve o tempo de trabalho e procura limitar o risco de apropriação excessiva do nosso quotidiano.

Enquanto geógrafo que se move entre espaço e tempo, reconhecemos que se levantaram práticas e dispositivos para a defesa do primeiro, sem a devida correspondência para a proteção do segundo.
No que ao espaço diz respeito, em múltiplas escalas geográficas disputam-se solos, demarcam-se perímetros, levantam-se muros, desenham-se (e contestam-se) fronteiras e limites, classificam-se áreas protegidas, aplicam-se complexos sistemas de vigilância, e organizam-se aparelhos administrativos de reconhecimento da propriedade, muitas vezes, reforçados por geossímbolos que sinalizam a posse.
Apesar disso, como o demonstra a atual guerra na Ucrânia, nem tudo corre bem neste domínio do espaço e dos territórios disputados. Este é um mundo instável e de relações de poder complexas e assimétricas.
Regressemos, contudo, ao tempo que hoje não defendemos com o mesmo cuidado e a mesma acuidade com que prestamos atenção ao espaço.

Nas fábricas e nas minas dos modelos urbano-industriais fordistas, o tempo de trabalho era ordenado pela sirene que definia as entradas e as saídas dos operários ou mineiros. Enquanto representação da época, ficaram na memória as imagens e os ritmos de uma cidade mineira no País de Gales, em “How Green was my Valley” (de 1941), um filme de excelência realizado por John Ford.
A digitalização dos quotidianos, a portabilidade das tecnologias de informação, os ecrãs omnipresentes e a conetividade permanente criaram um tempo híbrido e difuso algures entre o lazer, o trabalho ou a simples navegação na rede
Não obstante as conquistas sociais do século XX, na atualidade pós-moderna tudo parece diferente. O tempo é um património disputado e um campo aberto no qual são escassos os mecanismos de delimitação e diminutas as barreiras de proteção.
Neste aspeto, assinale-se o tempo cedido e perdido em troca de pouco ou de nada. A digitalização dos quotidianos, a portabilidade das tecnologias de informação, os ecrãs omnipresentes e a conetividade permanente criaram um tempo híbrido e difuso algures entre o lazer, o trabalho ou a simples navegação na rede.

Este processo acontece no contexto de uma sociedade de controlo ou, segundo Byung-Chul Han, numa “Sociedade do cansaço” com dispositivos materiais e imateriais que nos conduzem, como autómatos, a mergulhar num tempo indeterminado de produção utilitária.
Entretanto, nas redes sociais e nas páginas web, o importante é manter a ligação, ocupar e suprimir o tempo do internauta que se torna uma fonte gratuita de dados.
Nesta ligação constante, diminui a capacidade de atenção e aumentam o descentramento e o tempo de cativeiro. Como nos disse José Saramago, promove-se a experiência das cavernas e do enclausuramento num mundo fechado e sem janelas.
O próprio nómada digital libertou-se do espaço, ganhou mobilidade e viaja para mais longe. Todavia, perdeu o controlo e deixou-se aprisionar pelo tempo.
Nesta linha do tempo, enquanto património que não conseguimos dosear nem recuperar, à navegação digital fútil acrescente-se o tempo do “zapping” televisivo, o tempo que consagramos a falsas amizades ou o tempo dedicado a percorrer caminhos que, lá mais à frente, se revelam inúteis e traiçoeiros.
Como nos disse José Saramago, promove-se a experiência das cavernas e do enclausuramento num mundo fechado e sem janelas
O tempo que cedemos é aquele que vamos perdendo com o envelhecimento. Neste relógio infalível, o espaço que defendemos melhor que o tempo poderá revelar-se excessivamente grande, ou demasiado longe e inacessível.
Desta forma, o espaço incorre no risco do anacronismo. Com o avanço da idade, vão-nos faltando horas, semanas e anos, mas podem sobrar-nos metros quadrados. A habitação serve de exemplo. Depois de tudo fazermos para alargar a casa e acolher uma família em crescimento, este lugar que se habita pode tornar-se excessivo à medida que vamos ficando mais sozinhos e revelando sinais de imobilidade.

Enquanto facto político desta contemporaneidade híbrida, o tempo é também um instrumento de poder na forma como se impõe a espera, se adiam decisões ou, em áreas fundamentais como a justiça e a saúde, se controla o outro deixando-o em suspenso.
Neste caso, não é o tempo que falta, mas o tempo que se arrasta por horizontes indefinidos que nos desgastam e não conseguimos circunscrever.
Noutros contextos, o tempo que não defendemos, nem conseguimos ordenar, peca pela rapidez e pela hipervelocidade que não permite a observação da paisagem atravessada por uma autoestrada.
Na relatividade desta compressão espaço-tempo, o relógio acelera e cria ciclos de vida mais curtos, como aqueles que degradam os produtos consumidos em massa, com garantias curtas e uma durabilidade média limitada.
Enquanto questão cultural e política no século XXI, idealistas como Agostinho da Silva olham para o tempo como um património de liberdade que se predispõe à criatividade.

Mais pessimista, José Tolentino Mendonça (in “O que é amar um país”, de 2020, pp. 41-42) diz-nos que somos escravos e engolidos pelo tempo cronológico, “[…] aquele tempo utilitário e voraz, aquele contador ininterrupto que não dorme, aquele corredor que ninguém consegue travar”.
Tolentino Mendonça (em 2020) alerta-nos ainda para a culpabilização coletiva da pausa e da lentidão, como se estas significassem uma perda. Da mesma forma, diz-nos que os Gregos clássicos consideram o “chrónos” – um tempo linear e quantitativo, mas também o “kairós”, um outro tempo, mais existencial e qualitativo, o tempo de algum acontecimento especial.
É também neste sentido que o filósofo Luís Umbelino (no magazine Vive as Letras!, de outubro de 2022), defende que a universidade deve ser o lugar do pensamento lento e complexo e não das ideias da moda, rápidas, fugazes e superficiais.
De uma forma ou de outra, é nestes territórios de transição, entre o tempo e o espaço, entre a lentidão e a hipervelocidade, entre o tempo quantitativo e cronológico e o tempo qualitativo e existencial que se tece a nossa qualidade de vida.
20/10/2022