Saltar a fila

 Saltar a fila

Um parque de diversões devia ser um local cheio de alegria. Um mundo à parte, onde se pode passar um dia longe dos problemas, entrando em atrações coloridas que nos trazem experiências fora do comum. Nestes locais mágicos, não se espera ter de lidar com nenhumas preocupações. Contudo, deixo aqui o aviso: nunca vão a um parque de diversões na ponte de um feriado porque o que vos espera, na verdade, é um dia de longas filas que levam qualquer pessoa a estado de frustração permanente.

No parque de diversões, conhecidos e desconhecidos deviam ser todos amigos, sorridentes e com endorfinas bem altas. Eu, no meio de mais uma fila interminável e de gente incontável, comecei a estar farto de todos à minha volta, sobretudo dos que podiam saltar a fila, no que me pareceu uma triste metáfora da sociedade. Tudo porque as empresas que gerem estes espaços têm noção do problema das filas e, em vez de tentar resolver o problema (otimizando filas para oferecer o mesmo nível de divertimento a todos), tentam sacar mais dinheiro da situação.

Por isso, além do preço do bilhete, uma pessoa pode comprar passes especiais que lhe permitem passar à frente dos outros nas filas. O passe mais barato é tão caro quanto o bilhete normal para entrar! O resultado? Uma micro-sociedade em que quem paga mais tem o direito de passar por cima do resto. Enquanto via as pessoas a saltar a fila, lembrei-me da cruel realidade das companhias aéreas de baixo custoque também começam por tirar elementos básicos de um serviço (como levar malas no avião) e depois os vendem aos passageiros como se nada fosse. Incluindo o direito a entrar antes no avião. Até num momento de lazer, uma pessoa é obrigada a lembrar-se das limitações em que a sociedade está construída.

O dinheiro sempre ajudou a ter mais tempo, saúde, respeito e acesso a muitas oportunidades, mas o neoliberalismo levou-nos a um extremo onde o dinheiro acaba por ser tudo, com negócios que se esforçam por maximizar lucro em vez de bem-estar. As pessoas, presas na rotina do dia a dia, aceitam essa realidade sem pensar quantas horas se trabalham para pagar preços por serviços que apenas servem para entregar lucros no altar do crescimento económico.

Na verdade, o resultado das desigualdades sociais — isto é, o sofrimento humano — até se torna entretenimento. Enquanto eu ia a um parque de diversões, o mundo delirava com o Squid Game (em Espanha traduziu-se por Juego del Calamar o que lhe dá um toque de comédia negra), uma série sul-coreana que tem como premissa a existência de pessoas tão desesperadas por dinheiro que, na esperança de receber dinheiro no final, escolhem pôr a própria vida em risco ou matar outros. Tudo enquadrado por jogos infantis e, claro, orquestrado para a diversão de pessoas ricas.

O desespero destas personagens tem base na realidade. A Coreia do Sul tem uma enorme crise de endividamento — estima-se que, no seu conjunto, as famílias coreanas devem 105% do Produto Interno Bruto do país — que já levou a situações trágicas, com certeza. Não vale a pena pensar que este é um problema longínquo de Portugal ou de Espanha, já que a sociedade moderna se baseia em empréstimos. Contudo, lá está, a pobreza no meio da abundância é um dado tão adquirido que já nem temos problemas em assumi-la como algo para nos divertir.

“Melhor eles do que eu” ou “nem estamos assim tão mal”, pensamos, mas nem nos apercebemos de que o sistema em que vivemos não passa de uma enorme fila de espera onde uns podem pagar para passar à frente, com disparidades cada vez maiores. É complicado lembrar-nos de tudo isto no disco-riscado que são os dias da semana — e que estes pensamentos me tenham ocorrido num parque de diversões significa que sou um privilegiado — mas convém não perder a sensibilidade de que, enquanto uns saltam a fila, com alguns podendo dar-se ao luxo de chegar ao espaço, a grande maioria continua a correr sem sair do mesmo lugar.

02/11/2021

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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