Segundo postal: flores de Primavera amanhã em coroa fúnebre
Não tenho a mínima simpatia por Bashar al-Assad. Nem tenho a mínima dúvida do carniceiro que era. Mais: conheci sírios exilados e perseguidos. Não tenho ilusões sobre o horror que representava.
Mas sei que era um estado laico. Sei que os rebeldes que tomaram o poder são fundamentalistas terroristas. Sei que as torturas em Damasco não eram piores nem melhores do que em Guantánamo. Sei que as “Primaveras Árabes” rapidamente, todas, se transformaram em Invernos de desolação. Sei que a posição geoestratégica da Síria e geoeconómica como corredor para o mar, de há muito, era apetecível para os Estados Unidos da América (EUA). Sei que era muito conveniente tentar levar a Rússia a desdobrar-se num esforço de guerra para evitar a muito próxima possibilidade de capitulação do regime de Volodymyr Zelensky, na Ucrânia. Sei que Israel aproveitou, de imediato, para atacar uma Síria enfraquecida. Sei que a característica dominante do “pós-Primaveras Árabes” não é sequer um governo de aliado dos EUA, mas a dissolução do Estado. Sei que é mais fácil negociar com bandos de mercenários do que com um Estado, por mais corrupto e sanguinário que seja. Sei que os Curdos, agora saudados, vão ser abandonados e novamente feitos em carne para canhão. Sei que o líder dos rebeldes vitoriosos em Damasco é um líder do fundamentalismo islâmico. Sei que os direitos humanos, que Bashar violava, não são menos violados na Arábia Saudita, país “amigo do Ocidente”.
E sei que Joe Biden (leia-se a actual liderança do partido democrata) tem uma agenda de guerra multipolar e adoptou, para si, a agenda de Liz Cheney para tentar destruir a Rússia, à custa de um cataclismo mundial.
Por tudo isso, não festejo um momento de natural alegria de um povo tiranizado, porque o sei rebanho preparado para a degola. Quanto mais não seja para “justificar” uma intervenção militar. Para que, uma vez o país usado como base militar, uma vez destruído, uma vez exaurido pela extracção intensiva das suas riquezas, será abandonado à sua sorte, como o Afeganistão, nas mãos de um qualquer Talibã local.
E sei isto tudo porque a pança não me cresceu no sofá, substituindo o carácter primário de “O Livro Vermelho”, da autoria de Mao Tsé-Tung, pelos livros da primária propaganda da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Não pus vendas nos olhos para deixar de ver a miséria, a fome, a doença e o mais do neofascismo, que se esconde sob o nome de neoliberalismo. Mantenho-os vigilantemente abertos, com a absoluta independência crítica que tive para com a União Soviética, não me confundindo para me maravilhar com o gangsterismo posto à solta por Boris Ieltsin.
Tive a sorte de nascer a tempo e de o tempo não me minar a consciência. E de, assim, não esquecer o Vietnam, a Baía dos Porcos, o Camboja, o Laos, a morte de Patrice Lumumba, a invasão da Nicarágua, os golpes de Estado no Brasil, na Argentina e no Chile, nem de ter notícia do golpe dos coronéis na Grécia e da ditadura promovida na Indonésia – e de quem apoiou tudo isso. Sei quem são os que arrasaram o Iraque, o Sudão, a Líbia, o Líbano. Sei que são os mesmos que continuam a ser os únicos bárbaros a terem usado a bomba atómica.
Não posso, tragicamente, aspirar o perfume da liberdade desejada que exala das flores sírias, porque sei que são veneno aromatizado e prenhe de morte anunciada.
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Nota do Director:
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12/12/2024