Sobre empregos inúteis e a inutilidade do emprego
Trabalhadores produzindo, consumidores consumindo e patrões lucrando, outrora os alicerces da economia, passaram a ser partes não tão importantes do bom funcionamento do sistema. Tanto que ganharam a alcunha condescendente de “economia real”, um eufemismo que indica o cada vez mais etéreo ponto de interseção entre o capital e a vida cotidiana aqui na terra. Uma evidência disso é que mesmo diante do colapso generalizado da tal economia real durante a pandemia, os ricos continuam ficando mais ricos. O real não é mais lá tão relevante assim.
Se a primeira vaga do financismo serviu para desmontar os direitos sociais conquistados no pós-guerra, agora parece que o próximo alvo são as próprias pessoas. Para cada novo robô introduzido no mercado de trabalho, e a população de robôs atingiu seu pico em 2020, há um especialista bem intencionado a garantir que novos empregos para humanos surgirão. A defesa do tão buscado pleno emprego, em quaisquer condições que seja, passou a ser tarefa de vendedores de sonhos. Pessoas não são mais necessárias para manter a roda girando, certamente não no farto contingente que temos agora disponível no planeta. O crescimento eterno, fundamental para o galope dos lucros com a manutenção do emprego, é insustentável.
Não faz mais sentido uma agência de banco em cada bairro, caixas registrando compras em supermercados ou até, em pouco tempo, motoristas nos conduzindo pelas ruas. Não se precisa mais de gente, nem mesmo de gente barata em países periféricos. Será desnecessário que uma impressora 3D seja deslocada para imprimir um carro em uma fábrica no ABC paulista ou em Chiapas, se isso pode ser feito em Detroit, Frankfurt ou Osaka, sem exigir décimo terceiro e férias. E como foi-se o tempo em que trabalhadores podiam, com algum esforço, consumir o fruto de seu próprio trabalho, não servem mais nem como mão-de-obra, nem como consumidores. Como não têm serventia, pela lógica intrínseca ao sistema, não precisam existir.
Mas antes de sermos conduzidos pacificamente para o abatedouro, convém explorarmos alternativas, mesmo que talvez apenas por resistência pueril. A associação entre o esforço do trabalho e a subsistência é uma reminiscência de tempos idos, mas sobrevive como convenção inquebrável, tal qual a atribuição de valor a um pedaço de papel emitido por algum banco central. Em um tempo no qual artigos são produzidos, colheitas são ceifadas, e vendas são concretizadas autonomamente, o emprego deixa de ser essencial como fundamento da sociedade. Não é mais, não como estávamos acostumados. Ainda assim, a associação moral entre a labuta e a dignidade, ou melhor, entre a ideia do ócio e a infâmia é assustadoramente poderosa. Sobretudo entre aqueles que dependem do suor do rosto por horas a fio para garantir a própria existência. É compreensível, mas não verdadeiro.
Sempre haverá interesse para a inovação, para o aprimoramento pessoal e coletivo, para o desenvolvimento de ideias, produtos, serviços. Assim como haverá espaço para o trabalho, seja ele gratificante ou não, desde que devidamente estimulado e recompensado a contento. O emprego, aquele cuja única função é a sobrevivência do empregado, é que deve ser dispensado. Se distribuídas de forma justa, o mundo já produz riquezas suficientes para sanar com dignidade as necessidades básicas de todos nós. Sem exigências, sem contrapartidas.
Sei que ainda não estão postas as condições para a transição do atual arranjo social, no qual a subsistência das massas depende da inserção individual no sistema produtivo, para outro em que a subsistência seja garantida como direito. A despeito da casta de rentistas, que usufrui de seu ócio sem contestações práticas, o estigma de que o direito a uma vida digna esteja condicionado ao merecimento ou, com boa vontade, a algum tipo de contribuição, está de tal forma entranhada em nós que até segmentos mais progressistas do espectro político insistem em defender a preservação, não a superação do subemprego. Contudo, ainda que haja pouca esperança de que esse tema seja posto em discussão de forma séria e espontânea em um futuro próximo, está claro que o bonde já desgovernado do desemprego e da miséria, mais cedo ou mais tarde, irá finalmente descarrilhar. E então restará a escolha forçosa entre a vida como direito ou a morte como dever.