Teatro e cinema

 Teatro e cinema

“Mon Cas” (“O Meu Caso”), de Manoel de Oliveira, apresenta quatro versões da mesma história: através da perspectiva de uma peça de teatro, de um filme mudo, de um filme dos anos 50 e, por fim, através de uma perspectiva bíblica e filosófica. (leffest.com)

Consultando a Internet e a minha memória, verifico que quase na década de sessenta, no ano de 1959, sete anos depois de eu ter nascido, a população na minha cidade, Concepción (no Sul do Chile) era de 240 mil habitantes1. Em 1974, ano em que abandonei o país, era de 360 mil residentes. A cidade, situada nas margens de um extenso rio – o Biobío, um dos maiores rios do Chile – foi o meu berço de nascimento e de formação na escolaridade, incluindo os estudos universitários. 

Numa cidade de província, as ofertas culturais não eram muitas. Mesmo assim, tive a sorte de desfrutar de acontecimentos artísticos que me marcaram e que me ajudaram a definir o meu percurso artístico, logo no início da minha formação. 

O Teatro da Universidade de Concepción faz parte desses marcos que ficam preservados na memória da cidade, como luzes que nortearam as manifestações culturais de sua época. (Créditos fotográficos: Arquivo Fotográfico UdeC – noticias.udec.cl)

Na cidade, existia uma companhia profissional de teatro: o Teatro da Universidad de Concepción (TUC). Faço notar que esta era uma companhia profissional subsidiada pela universidade, como as que já existiam em Santiago, na Universidad de Chile (DETUCH) e na Universidad Católica (Teatro de Ensayo de la UC). Importa não confundir com os teatros universitários constituídos, apenas, por estudantes (sendo, por isso, amadores)2.

Nessa universidade, havia um anfiteatro no campus universitário que me fazia lembrar os teatros gregos nas suas origens, no século V a.C., e as representações eram de tarde, cavalgando até à noite, o que as tornava mais poéticas e fantásticas… Foi aí que assisti, pela primeira vez, a uma representação integral de uma peça de William Shakespeare: “Sonho de Uma Noite de Verão”.

Anfiteatro San Pedro de la Paz, na província de Concepción, Região de Biobío, no Chile. (pt.m.wikipedia.org)

Esta companhia profissional realizava uma temporada anual de, no mínimo, três espectáculos diferentes. E, na Primavera/Verão, o repertório total era reposto naquilo a que nós chamávamos o “Fórum Universitário ou auditório ao ar livre”.

Paralelamente à actividade teatral, existiam os cinemas, que foram também para mim uma grande escola de aprendizagem. Cinemas que tinham nome de estrelas, como o Astor, o Esplanade ou o Lux – sala que homenageava a luz iniciática dos irmãos Lumière (Louis e Auguste) que consagro e que deu origem ao cinema. Ou nomes de castelos ou de dinastias, como o Alcazar, o Windsor, o Regina, o Romano, o Gran Palace, o Ducal e o Rex. E também salas com nomes de personalidades e figuras históricas, como Cervantes ou Prat (Agustín Arturo Prat Chacón, o nosso herói da Guerra do Pacífico).

Os cinemas foram um lugar de conhecimento e de curiosidade para a minha geração. Dificilmente voltávamos para casa, depois de uma sessão, sem alguma pergunta ou alguma dúvida para esclarecer. 

As sessões cinematográficas eram, nos cinemas de bairro, rotativas. Isto é, contínuas, sem paragem. E podíamos entrar e sair quando nos apetecesse. Além disso, podíamos ver uma fita mais de uma vez e deixar-nos estar no cinema o tempo que quiséssemos.

Fachada original do Cine Lux. (urbano.wikiexplora.com)

Também havia sessões duplas (de dois filmes) e triplas (de três filmes seguidos). Foi assim que devo ter visto centenas de filmes, dos quais ainda tenho memória.

Devo ao cinema e ao teatro a minha formação sobre o espectáculo. E entre os dois géneros, é difícil dizer do qual gosto mais. Confesso nunca ter saído de uma projecção cinematográfica, mas já saí, uma única vez, de uma representação teatral, que me era insuportável. Não direi qual o grupo nem qual a peça, nem a companhia nem o responsável por esse espectáculo, por pudor!

O filme “O Meu Caso”, realizado por Manoel de Oliveira, é um trabalho de “enorme criatividade e inovação”, inspirado na peça de teatro homónima de José Régio, em Beckett e do texto bíblico “Livro de Job”. Na imagem, vemos o actor Luís Miguel Cintra. (rtp.pt)

Cinema e teatro, “entre les deux mon coeur balance”. Como poderia estar numa peça de José Régio… e, já agora por que não (?), recordar esse magnífico filme de Manoel de Oliveira, intitulado “O Meu Caso”, a partir da peça homónima de José Régio3. Filme que tão bem conjugou o teatro (filmado) e o cinema. Como adianta um texto da Cinemateca Portuguesa: “[…] sob o signo de ‘Repétitions’, a acção/exposição – com integral rodagem interior, em sala de espectáculos – reconstitui-se por quatro vezes sobre o palco, antes de estrear a peça; como num filme mudo, em projecção acelerada; num mais rasgado e cromático registo visual, sendo distorcida a sonoridade do diálogo; num quadro crepuscular da civilização actual, em […] modelos bíblicos.”

Lemos ainda que, do “Livro de Job” a José Régio, a condição humana é “vista através de várias histórias que se cruzam num mesmo palco, e em cenas que parecem repetir-se”. “Começando em tom de comédia ‘O Meu Caso’ surge como uma reflexão metafísica sobre o destino do homem e a sua dimensão religiosa”, assinala a mesma nota da Cinemateca Portuguesa.

Importa recordar esse actor magnífico que é Luís Miguel Cintra, hoje, afastado dos palcos e da sua companhia extinta, o Teatro da Cornucópia!

(rtp.pt)

Em anos idos, encenei para o Gérmen – Intervenção Teatral (grupo que nasceu sob a minha orientação), de Vila do Conde, duas peças de Régio: “O Meu Caso” e “Três Máscaras”. Estas encenações deram-me uma grande alegria e satisfação, coroadas, naquele tempo, com a amizade que se estabeleceu com o irmão do autor, Apolinário José (1917-2000), também poeta e pintor.

Finalmente, as notícias chegaram até à cidade de Avignon, onde Tiago Rodrigues é director artístico do prestigiado festival de teatro francês, desde Julho de 2021. Estão relacionadas com a demissão de toda a equipa de Évora Capital Europeia da Cultura e, em Lisboa, com a exoneração de Francisca Carneiro Fernandes da presidência do Centro Cultural de Belém. São recados de Tiago Rodrigues para Maria Dalila Aguiar Rodrigues, a ministra da Cultura do actual governo, em artigo publicado no jornal Público (em 3 de Dezembro), com o título “Um ministério que não é deste país”.

Escola Superior Artística do Porto. (fr.spotic.net)

Há mais de uma década, e pela minha intervenção como director do Curso de Teatro (CST) da Escola Superior Artística do Porto (ESAP), em colaboração com a direcção académica da ESAP, no Mosteiro de São Bento da Vitoria, depois de uma representação dos alunos finalistas, foram homenageados quatro personalidades do Teatro Nacional São João (TNSJ), em reconhecimento pela ajuda dada ao CST, na divulgação e na produção dos seus espectáculos. Nessa oportunidade, lembrámos o contributo do seu director artístico, o encenador Nuno Carinhas, bem como de Salvador Santos (director de produção), de Luísa Corte Real (no âmbito das relações-públicas) e de Francisca Carneiro Fernandes, então, presidente do Conselho de Administração do TNSJ. Agrada-me verificar que a contestação a esta exoneração, além de ser denunciada por personalidades da Cultura, em Portugal, é contestada, igualmente, pelos trabalhadores e pelos colaboradores de Francisca Carneiro Fernandes no CCB.

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Notas: 

1 – Concepción é uma cidade no Centro-Sul do Chile, localizada, aproximadamente, a 450 quilómetros a sul da capital, Santiago, e a cerca de 30 quilómetros a norte do centro geográfico do Chile continental, localizado na comuna de Coronel. Concepción é também o centro geográfico e demográfico da Área Metropolitana de Concepción, bem como a capital da província homónima e da Região de Biobío.

Na cidade chilena de Concepción.  (Créditos fotográficos: Killari Hotaru – Unsplash)

2 – Numa rápida consulta à página electrónica Memória Chilena, da responsabilidade da Biblioteca Nacional do Chile, lemos que, em 1941, foi fundado o Teatro Experimental da Universidade do Chile. A crítica especializada considera esta fundação como o ponto de partida da actividade teatral universitária, que mais tarde se tornaria um movimento que atingiu todo o território nacional e que trouxe novas perspectivas e energias para a cena teatral chilena.

(ojs.uc.cl)

Dois anos depois, nascia o Teatro de Ensayo de la Universidad Católica, que tinha, entre as suas diversas iniciativas, a publicação da Revista Apuntes de Teatro. Os teatros universitários contribuíram para o desenvolvimento de novos temas nacionais, que incluíram dramas sociais, teatro psicológico, comédia crioula e resgate do folclore. Assim como experiências que exerceram forte influência na produção dos dramaturgos da Geração Literária de 1950.

Pouco mais tarde, nasceram os grupos de Teatro da Universidade Técnica do Estado (Teknos), em 1958; o Teatro da Universidade de Antofagasta, em 1962; e o Teatro da Universidade de Concepción (TUC), em 1945.

3 – Como regista a Wikipédia, o filme é baseado na peça “O Meu Caso”, de José Régio, assim como em Samuel Beckett (“Pour en finir et autres foirades”) e na Bíblia (“Livro de Job”).

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16/12/2024

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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