Trabalho e escapismo: um círculo vicioso onde desligar é cada vez mais complicado

(Créditos fotográficos: Marco Dias Roque)
Quando foi a última vez que pensou no sentido da vida? O propósito do ser humano atormenta filósofos sem uma conclusão definitiva porque, embora a questão seja universal, a resposta é pessoal. Cada um tem de definir o seu propósito, mas poucos pensam nisso de maneira consciente, sobretudo, porque vivemos demasiado cansados para pensar no sentido da vida.
Ao crescer, não nos damos conta de que nos vamos moldando e definindo pelas expectativas e prioridades dos outros: família, religião, desporto, trabalho, viagens ou poder. Quando somos adolescentes, questionamos tudo, mas, como adultos, o dia a dia suplanta a imaginação. E, como o mundo não está organizado em função disso, perdemo-nos na rotina e deixamos de tentar definir a nossa realidade. Aceitamos dias pouco interessantes porque a vida é assim. Somos animais muito estranhos.

A definição de um propósito não é fácil porque, ao contrário da maioria dos animais, a sobrevivência de um humano depende das perceções dos demais. Um lobo caça com a sua alcateia, mas não está preocupado com o que fazem os leões na savana. Uma manada de antílopes encontra força nos números, mas não existe um chefe que designa tarefas para cada um. Uma ovelha não fica a matutar por que é não a promoveram no rebanho. Somos os únicos animais que aceitam viver dependentes das opiniões e decisões dos outros, num modelo social de subserviência que nos consome e a que chamamos trabalho.
A definição de um propósito não é fácil porque, ao contrário da maioria dos animais, a sobrevivência de um humano depende das perceções dos demais
Fora exceções, o trabalho ocupa cerca de um terço das nossas vidas, sem contar com as horas extra nem com o tempo mental dedicado a questões laborais após picar o ponto. Além disso, este tempo está concentrado nos anos em que estamos no auge das nossas capacidades mentais e físicas. Para além disso, o que fazemos e a perceção do nosso sucesso laboral, seja na forma de dinheiro ou de prestígio, moldam a nossa identidade. O trabalho define as nossas vidas, o que, para muita gente, não é um problema. Gostam do que fazem, do poder que lhes traz e, com sorte, do bem que trazem ao mundo. Por isso, o trabalho, por si mesmo, não é mau. Contudo, o controlo e o stress que cria sobre as nossas vidas significa que, desde um primeiro momento, grande parte da Humanidade tenha odiado trabalhar. A prova disso é uma atividade que acompanhou o desenvolvimento social: o escapismo.

O escapismo é uma atividade mental que nos ajuda a escapar do stress e das partes desagradáveis do quotidiano. Ou seja, um escape mental, em que nos esquecemos da realidade e optamos por uma fantasia que nos dá mais prazer. Um dos primeiros exemplos de escapismo, em grande escala, vem do Império Romano. Enquanto houvesse “pão e circo”, o povo aguentaria as más condições de vida e a corrupção imperial. Mas foi no século XX que o escapismo se tornou uma indústria.
A época de ouro de Hollywood (entre 1930 e 1950), cheia de musicais épicos, serviu para escapar à negra realidade da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial. O movimento psicadélico dos anos 60 popularizou drogas para mudar a perceção de uma realidade cheia de desigualdades sociais e de mais guerras. E, a partir da década de 1970, existiu uma explosão de literatura de fantasia e de ficção científica que criou mundos fantásticos onde, ainda hoje, muitos vivem.
A partir de então, a globalização massificou o escapismo: séries de televisão, videojogos, redes sociais, viagens. Com plataformas de streaming, nunca foi tão fácil ligarmo-nos a uma quantidade infinita de entretenimento que não pede nada de nós. Por isso, atualmente, mais do que nunca, dedicamos dias de esforço laboral para depois tentar esquecer que trabalhamos.
O escapismo é uma atividade mental que nos ajuda a escapar do stress e das partes desagradáveis do quotidiano
Trabalhar, frustrar-se com o trabalho, esquecer a realidade por alguns momentos (num videojogo ou na televisão) ou dias (numa viagem) é uma armadilha que aceitamos como um estilo de vida. O advento das redes sociais complicou ainda mais a situação: não nos podemos desligar nem do trabalho nem do escapismo dos outros. O escritório está sempre à distância de um clique e a satisfação pós-laboral perde-se entre dois extremos, conhecidos por nomes em Inglês: FOMO e doomscrolling. FOMO – “Fear Of Missing Out” – é o medo de estar a perder algum acontecimento importante que os demais seguem ou de ver os nossos amigos a divertirem-se, enquanto estamos em casa de pijama. Doomscrolling é o ato de passar horas a ler notícias negativas no telemóvel. Entre os dois, não podemos ganhar: se não nos conectamos, perdemos a ação; se estamos ligados, a ação deprime-nos. E, claro, amanhã trabalha-se. Então, como nos poderemos desligar?

Estranhamente, a solução para desconectar de maneira saudável chega do passado. Os sábios da Antiguidade dedicaram milénios a desenvolver a arte da meditação. Meditar, na sua génese, não é mais do que um conjunto de técnicas para acalmar o cérebro e, se possível, para cortar ou para aceitar os nossos pensamentos, sem que eles nos consumam.
Sim, é possível programar o cérebro para desconectar sem ter de recorrer a drogas, ou pior, ao reality show Big Brother. A prática regular de meditação pode ajudar a reduzir a ansiedade, bem como a aumentar a clareza mental e a criar uma maior consciência sobre os nossos hábitos, ajudando-nos a perceber que, muitas vezes, o que nos consome é passageiro. Parar por cinco minutos em cada manhã, respirar fundo, entender que pensamentos nos enchem a cabeça e criar alguma distância entre o que pensamos e o que somos (não, não é o mesmo) pode ser revolucionário. E esta atividade é melhor que qualquer escapismo, já que, feitas as contas, o sentido da vida pode não estar nas respostas imediatas que procuramos, mas, sim, na capacidade de silenciar o ruído e de ouvir o que realmente importa.
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03/10/2024