Um emigrante não é carne nem peixe

 Um emigrante não é carne nem peixe

Cidade de Londres, no Reino Unido. (Créditos fotográficos: Mike Stezycki – Unsplash)

As bolas de Berlim são deliciosas. A massa dourada e açucarada misturada com o creme pasteleiro aquece o coração de qualquer um, seja na praia ou no inverno londrino antes do Natal. O problema é que os humanos não sabem apreciar a perfeição, têm sempre de explorar alternativas. No caso da bola de Berlim, a opção é substituir o creme pasteleiro por geleia ou outros doces, algo que, apesar de muitas dúvidas, decidi provar numa pastelaria portuguesa em Londres. Pedi, em Português, duas bolas de Berlim “normais” e outras duas de geleia. O senhor ao balcão entendeu o primeiro sabor, mas bloqueou no segundo. “Geleia?”, perguntou. “Geleia,” repeti. Ele não entendia, então apontei para o alvo. “Ah, as de jam!”. Emigrar é isso, querer geleia e ter de comer jam. Um infinito de pequenos ajustes, em que até as palavras se perdem. E acabamos por não ser carne nem peixe.

(Créditos fotográficos: Marco Dias Roque)

Um emigrante vive entre dois mundos: o do país de origem e o de residência, sem fazer parte de nenhum a cem por cento. Emigrar é viver sem representação política, ser tratado como um cidadão de segunda categoria e, até, ser empurrado para fora dos países que nos recebem. Tudo enquanto se é cada vez menos parte do nosso país. Um exemplo disto foi uma discussão no Reddit, em que um utilizador questionava se os portugueses que vivem fora de Portugal deviam ter direito a votar. É surpreendente ver alguém questionar um direito tão básico. Sem poder votar onde vivemos e perdendo o direito a votar onde nascemos, seríamos cidadãos de segunda em dois países ao mesmo tempo. Tudo porque, segundo o utilizador, quem está fora não vive com as decisões dos governos. Por isso, na sua opinião, não devia influenciar a política nacional. Uma perspetiva míope, já que o que se define em Portugal afeta todos os cidadãos. Nem que sejam decisões relacionadas com a rede consular ou que afetem a família que ficou para trás.

O utilizador foi apaziguado com explicações básicas sobre o sistema eleitoral português (os círculos de emigração têm uma representação muito limitada, dois deputados pela Europa e dois fora da Europa), mas é triste ver tentativas para ostracizar os emigrantes. Notícias de que portugueses não residentes em Portugal perderiam acesso ao sistema nacional de saúde também mostram esta precariedade. Esta medida é mais fácil de entender – o sistema de saúde é suportado por impostos e quem vive no estrangeiro não contribui –, mas continua a doer emocionalmente. Em particular, quando os governos se esforçam tanto por trazer emigrantes de volta.

(Créditos fotográficos: tonysell – Pixabay)

Se a coisa não está famosa do lado português, não melhora nos países de acolhimento. Quem nunca emigrou pensa que a emigração é uma solução mágica para ganhar mais dinheiro, mas vem com um grande custo pessoal. Deixamos para trás a família, a cultura, a língua e somos, muitas vezes, recebidos com indiferença ou hostilidade. Nem é um custo apenas emocional, é também económico. Depois do Brexit, é preciso pagar para imigrar para o Reino Unido. O visto laboral custa milhares de libras, incluindo uma taxa que vai diretamente para o sistema de saúde local. Uma espécie de pagamento por adiantado. Até aqui tudo bem, o problema é que a taxa se repete nos descontos normais. Ou seja, paga-se primeiro pelo “prazer de trabalhar” – e de contribuir para a riqueza do país que nos recebe –, depois cumprimos os impostos normais e, finalmente, em duplicado, pelo acesso ao sistema de saúde. Se, por algum motivo, é preferível ser tratado em Portugal, seria a triplicar.

O Reino Unido tem uma relação complicada com a imigração. Uma das bandeiras do Brexitfoi que o país assumiria o controlo das fronteiras e limitaria quem entrasse no país. Contudo, três anos depois da saída da União Europeia, a imigração nunca foi mais alta: em 2022, 606 mil pessoas mudaram-se para o país, legalmente, com mais de 50 mil a saltar a fronteira e a entrar no país em pequenas embarcações. Embora a imigração, tanto de especialistas como de mão de obra menos qualificada, seja uma necessidade para o país, perante estes números, o governo promete diminuir a imigração seguindo a linha populista do Brexit. E, legais ou ilegais, os imigrantes são metidos todos no mesmo saco. Pior, são os nossos impostos que pagam a estas pessoas por estas políticas que indicam que não somos bem-vindos.

(Créditos fotográficos: Heidi Fin – Unsplash)

A ausência de peso político e falta de representação tornam os emigrantes um alvo fácil. Diferentes setores da sociedade atacam quem nasceu noutro país e, muitas vezes, a nação de origem também não se preocupa muito com os seus cidadãos. Vivemos com todas as responsabilidades e apenas com alguns direitos, a par do pouco reconhecimento das nossas contribuições. Cada pessoa merece sentir-se em segurança e não como inferior, apenas porque nasceu noutro lado. Os emigrantes são uma ponte entre dois mundos, os quais podem enriquecer dois países. Sem imigração (neste caso forçada), a bola de Berlim não teria chegado a Portugal. Aliás, se fosse hoje, se calhar até teriam de pagar taxas adicionais para ter direito ao creme ou – não que valha a pena – jam.

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04/01/2024

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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