Um país demasiado precário
Em setembro havia mais de 410 mil desempregados inscritos nos centros de emprego do Continente e Ilhas. Tais números representam um aumento de 0,2% em relação a agosto, mês em que a subida face a julho tinha sido de 0,5%. A tendência de crescimento vai manter-se: no final do ano a taxa de desemprego, em Portugal, segundo projeções do governo, atinjirá os 9,6%. Por enquanto está nos 8,3%. Mais de 80% dos desempregados inscritos são jovens até aos 25 anos. Tal contingente “industrial de reserva”, na expressão de Marx, funciona como limitador da liberdade de trabalho, o que explicará, à margem dos efeitos da Covid-19, as baixas remunerações oferecidas e o aumento da precariedade que, sem que haja rigor nos números, se estima que ande perto de um milhão de situações.
Atenção desempregados: há uma oferta aliciante de 250 euros mensais, a que acresce uma percentagem não especificada sobre as vendas realizadas, que não podem perder. A proposta é para seis meses, havendo da parte da empresa a garantia de que é sua intenção transformar o emprego precário em “full-time employee”. Sim, toda a informação está em inglês, incluindo o nome da startup em causa — Radical Wellness —, o que empresta à coisa uma imagem super-moderna — coquette, se fosse francesa — e cosmopolita. Menos no ordenado, mas isso é um detalhe. Este é apenas um dos muitos casos que por aí circulam — o mais recente, porventura. Mas há pior: uma publicação que promete ser muito glamorosa, há duas semanas procurava editores para a sua secção de desporto, com a informação de que os primeiros seis meses não seriam pagos.
Ironias à parte,
“Era uma vez um país
que entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra. “
Portugal é esse país do poeta Ary dos Santos, a quem fomos pedir emprestados os versos escritos há mais de 40 anos, mas que em tanta substância teimam em manter-se atuais. É neste nosso país que em 2021 há gestores que, em dois dias, ganham tanto como um seu trabalhador num ano. Mesmo assim, o presidente do Fórum para a Competitividade e antigo presidente (durante duas décadas) da Confederação da Indústria Portuguesa, Ferraz da Costa, considera em declarações ao programa “DinheiroVivo/TSF”, que “neste momento” aumentar o salário mínimo “é uma ideia criminosa”.
Nessa linha de pensamento, correto é aceitar como boas as práticas em que os salários de 160 trabalhadores não chegam para pagar o ordenado do respetivo gestor, como sucede em várias empresas do PSI 20. De resto, em 2017, os CEOs das principais empresas cotadas em bolsa levaram para casa 17 milhões de euros, ou seja, mais 50% que em 2010, não obstante os anos de crise e contenção generalizada que Portugal viveu durante esse período. Os seus trabalhadores, pelo contrário, receberam no total menos um milhão e meio de euros. Dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos, indicam que Portugal é o 10º país mais desigual em termos de rendimento da União Europeia, e em 2019 “2,2 milhões de pessoas (21,6% da população) encontravam-se em situação de pobreza ou de exclusão social”. O mesmo estudo alerta que tais números “suscitam preocupação”, ao revelarem que um quinto da população do país “vive em situação de pobreza ou de exclusão social”.
O sociólogo Elísio Estanque, que analisa estes fenómenos, concorda que o panorama tem vindo a agravar-se, sobretudo “se considerarmos as desigualdades na base das distâncias sociais entre os salários mais baixos e os mais elevados”. Questionado sobre se tais casos têm ou não vindo a densificar-se, o mesmo especialista do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra especifica ao sinalAberto que “as camadas mais baixas dos trabalhadores portugueses são das mais proletarizadas da Europa, enquanto os “CEOs” portugueses estão praticamente ao nível dos das grandes empresas internacionais”.
Considerando que “a precariedade intensificou-se em Portugal desde a primeira fase em que os recibos verdes abriram caminho a múltiplas situações de abuso e exploração dos trabalhadores”, Elísio Estanque alerta para o facto preocupante de os sinais “no contexto da pandemia” serem “ainda mais preocupantes, dado que as condições sociais e os níveis de risco a que as diferentes classes sociais são expostas expõem ainda mais as desigualdades entre os grupos mais protegidos e os segmentos pobres e subalternos. Inclusive assiste-se de novo a uma tendência de empobrecimento de alguns segmentos da classe média”.
É nesse país que
(…) “Onde entre vinhas sobredos
Vales socalcos searas
Serras atalhos veredas
Lezírias e praias claras
Um povo se debruçava
Como um vime de tristeza
Sobre um rio onde mirava
A sua própria pobreza.”
Em agosto, dados avançados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) apontavam para um salário médio bruto de 1326 euros mensais por trabalhador. Se tivermos, no entanto, em conta, de acordo com dados da Autoridade Tributária, que quase 50% dos agregados familiares, num total dos 2,4 milhões de contribuintes, não pagam IRS, por não atingirem o escalão mínimo do imposto, facilmente se conclui que aquela média de rendimento está longe de reproduzir uma realidade agradável.
Isso mesmo se pode concluir quando, na semana passada, dados divulgados pelo Eurostat revelam que 21,6% da população portuguesa vive em risco de pobreza — valor superior à média europeia (21,1%) —, sendo que as mulheres são as mais afetadas. As opções políticas, visíveis desde logo no Orçamento de Estado, estão longe de trazer ou propor medidas tendentes a mudar o disco já riscado da precariedade, dos baixos salários, do jogo de cintura que muitas empresas continuam a praticar, beneficiando de um contexto — agora agravado pela pandemia — de necessidade em que muitos jovens e desempregados se encontram.
Pelo meio, surgem uns concursos que parecem querer brincar com a situação. Até de onde menos se esperaria. Em agosto, A JSD lançou um concurso direcionado a jovens desempregados ou “no início da carreira” com menos de 30 anos, desafiando-os a apresentarem uma nova identidade gráfica daquela juventude partidária. O vencedor ganharia 1.500 euros, os restantes, experiência. Em todo o caso, segundo declarações públicas do líder da JSD, Alexandre Poço, a iniciativa visava dar “à comunidade um sinal de que os jovens merecem todo o apoio”. Logo, nada melhor, para os apoiar, que colocá-los a trabalhar e a desenvolver ideias gratuitamente, como fez o referido concurso.
Dados de 2019 do Eurostat revelam que em Portugal há “mais de 130 mil novos contratos instáveis, de curta duração e com salários baixos”. Este aumento referia-se ao período compreendido entre 2008 e 2017, valor que, somado aos casos já existentes, perfaz um total próximo dos 900 mil casos de precariedade laboral e salarial. No espaço europeu só a Croácia está pior, embora seja de admitir que o cenário, por via dos efeitos da pandemia, possa ter-se agravado substancialmente. Os setores da construção, alojamento e áreas relacionadas com o turismo, como a restauração, representam os principais empregadores desta legião de contratos a termo e de baixos salários.
Para a Associação “Precários Inflexíveis”, o atual cenário é dramático e não dá sinais de abrandamento. De acordo com os seus dados “considerando os grupos que possuem contratos de trabalho precários, existiam em 2019 cerca de 670 mil trabalhadores com contratos a termo e 124 mil com outros tipos de contrato (não permanentes nem a termo certo ou incerto), onde se incluem perto de 100 mil trabalhadores com contratos de trabalho temporário. Deve-se assinalar que a taxa de contratos a termo se tem mantido inalterada na faixa dos 20% a 23% desde 2010, sendo sobretudo entre os mais jovens que há uma maior predominância dos contratos a termo (mais de 60% na faixa etária até aos 24 anos). Nos últimos 10 anos a média da UE no mesmo período esteve sempre abaixo de 15%. Infelizmente em Portugal — sustenta a mesma organização ao sinalAberto — não houve uma redução do recurso aos contratos a termo entre 2015 e 2019, apesar da expectativa criada com a mudança de governo de que haveria uma efetiva redução da precariedade laboral no país”.
Nas últimas semanas a mesma Associação não tem deixado de se fazer ouvir, sobretudo no atual contexto de negociação e definição do Orçamento de Estado para 2021. Em seu entender, “perante a agudização da crise social, com uma ainda maior pressão sobre o emprego e os rendimentos, a proposta do Governo falha na proteção a quem está em situação mais vulnerável”, defende a associação “Precários Inflexíveis”, em comunicado enviado às redações, fazendo notar que as medidas previstas no documento deixam “muita gente para trás”, nomeadamente os trabalhadores em situação precária.
De quantas pessoas estamos a falar ninguém sabe ao certo. A “Precários Inflexíveis” aponta para cerca de 1 milhão e 100 mil trabalhadores, embora considere que “a real dimensão desta realidade é desconhecida”.
Pisamos, pois, um terreno cheio de imprecisões e de dados incompletos. Em 2017, o Instituto Nacional de Estatística indicava a existência de “868,4 mil trabalhadores com contratos não permanentes”, o que correspondia, então, “a 22% do total dos trabalhadores por conta de outrem”. Um relatório da OCDE divulgado em abril do ano passado alertava para o facto de Portugal ser “o quarto país com o maior crescimento dos contratos a termo, só ultrapassado pela República Checa, Espanha e Polónia”, tendência esta que de acordo com o mesmo documento era já visível antes dos primeiros sinais da pandemia. Mais: Portugal é apontado como um dos países que paga pior aos jovens mais qualificados.
Por outro lado, revela o mesmo relatório intitulado “Employment Outlook 2019”, não obstante o apreciável número de greves registado nos últimos anos, Portugal está “abaixo da média europeia, em número de trabalhadores sindicalizados”.
Este cenário é agravado com o facto de “os trabalhadores precários terem menor representação sindical (muitos não podem sequer inscrever-se nos sindicatos, nem fazer parte de comissões de trabalhadores, devido ao tipo de vínculo que têm), o que dificulta a organização dos trabalhadores, fazendo com que tenham mais dificuldade em reagir a situações de pressão e assédio por parte da entidade patronal”, denuncia a “Precários Inflexíveis”. Por outro lado, sublinha a mesma organização, “a precariedade permite às empresas reduzir custos com contribuições para a segurança social, indemnizações por despedimento ou com a cedência de equipamentos aos trabalhadores (veja-se o caso das estafetas das plataformas de entregas ao domicílio)”.
Todos os trabalhadores precários com quem sinalAberto falou — entregadores de comida, vendedores porta-a-porta de grandes empresas, tarefeiros em empresas digitais — nos referiram, sob compromisso de não divulgarmos as suas identidades, as duras condições de trabalho, as exigências que têm de suportar e os baixos salários que auferem. “Até tenho vergonha de dizer e assumir o que me pagam”, desabafa C. D., uma estudante não portuguesa, de 23 anos, que percorre todos os dias a pé ruas sem fim, a tocar campainhas a vender serviços de uma grande empresa. Mais do que receio com eventuais represálias por darem a cara, os jovens contactados — todos com idades entre os 21 e os 26 anos — sentem vergonha ao terem de suportar as condições “indignas”, na expressão de um deles, que por necessidade têm de aguentar.
A Autoridade Tributária, perante a escassez de meios que enfrenta, é incapaz de levar a cabo a fiscalização que seria desejável, não obstante haver, por outro lado, falta de vontade política para criar uma legislação mais justa e equilibrada.
Que fique claro, no entanto, que tais situações estão longe de ser um exclusivo das empresas: “é imperativo terminar imediatamente o programa de regularização da precariedade no Estado, ou seja, concluir todos os concursos no âmbito do PREVPAP”, defende a “Precários Inflexíveis, para quem “parece que o Governo não só não quer terminar, como a quer aumentar, tendo lançado neste OE um novo programa de estágios na Administração Pública”.
Acresce, ainda, no entender da mesma Associação, que é imperioso “não esquecer “as novas formas atípicas de trabalho, que abrem a porta à selvajaria total nas relações de trabalho, como é o caso das plataformas digitais. Uma realidade que se acentuou muito com a atual crise sanitária e para a qual têm de ser dadas respostas rapidamente. Estas empresas fogem totalmente à legislação laboral e os trabalhadores e trabalhadoras não têm qualquer direito assegurado. É, portanto, necessário regularizar a situação destas pessoas, enquadrando-as dentro da lei, através de contratos de trabalho, e é necessário definir parâmetros como o limite máximo de horas de trabalho, remunerações mínimas fixas ou seguro de acidentes de trabalho”, acrescenta a “Precários Inflexíveis”.
Num quadro de clara desigualdade social e laboral — e até de presença nos media — o mundo e os interesses dos desempregados e precários vive dias difíceis, agravados pela ausência de políticas que procurem equilibrar as situações de desigualdade gritante que todas as instâncias nacionais e estrangeiras apontam de forma inequívoca e os números disponíveis sustentam.
Confrontados, pois, com tamanho problema e desafio, tudo indica que não resta a esses trabalhadores senão continuar a lutar por mudanças. De resto, alguns exemplos que vão vendo em alguns cenários e situações dão-lhes o sopro de esperança que tantas vezes lhes falta, como sinalAberto teve oportunidade de ver nas palavras dos precários com quem falou. De resto, a própria Associação faz questão em lembrar “a importância que teve a intervenção da Autoridade para as Condições de Trabalho na regularização de situações de falsas prestações de serviço (“recibos verdes”) nos casos da Casa da Música e da Fundação de Serralves”.
Há mais de um século, Manuel Laranjeira, no seu Pessimismo Nacional, opúsculo que reúne um conjunto de artigos seus publicados no jornal O Norte, escrevia que em Portugal “vestimos à moderna” e que, pelo aspecto, pertencemos aos “tempos dos Direitos do Homem”; porém, na verdade, acrescentava ele, “pelo espírito” estamos ainda no tempo “da pedra lascada”. Ou, como se conclui dos dados aqui publicados, habitamos um país demasiado precário.
Precários de todo o mundo, uni-vos
Entregadores de bens com base em aplicativos — como Ubber, Glovo, etc — do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai levaram a cabo uma greve geral nacional a 1 de julho. A iniciativa coincidiu com o lançamento da Rede Transnacional de Trabalhadores (RTT), organização internacional destinada a defender os direitos dos trabalhadores e motoristas e com representações em Espanha, Estados Unidos, França e Reino Unido. Seu objetivo é conseguir conectar essas organizações com os sindicatos e, em especial, com os trabalhadores das empresas afetadas ou influenciadas pelos gigantes da tecnologia. O crescimento da desregulamentação laboral é um dos problemas apontados por tais organizações.