Uma esmola bem dada

 Uma esmola bem dada

(contioutra.com)

Vivo num casulo. Sim, vivemos dentro de um casulo, mas não devemos, de forma alguma, lá colocar todo o nosso mel. Há um outro mundo que nos espera, que nos contempla e que ainda se deixa contemplar. Fui conhecer o meu Portugal. Não o fiz de lés-a-lés, porque não é meu padrão ver para afirmar que vi, mas conhecer, conhecendo sem levar a coisa a eito.

Estação Central de Camionagem, em Esposende. (municipio.esposende.pt)

Apanhei o autocarro em Esposende, onde fica o meu casulo, onde moram os mais de mim, onde uma infinidade de coisas fazem parte de mim, e num acto breve de desligamento me deixam partir, mas me obrigam sempre ao regresso. Era ainda cedo, naquela tarde outonal, em cujo mês patente nas folhas do calendário se engana a si e aos mais distraídos, mostrando, pela sua cronologia, que é o oitavo, mas na verdade é o décimo. E já lhe tinham voado os ares da juventude.

O meu destino era chegar ao Porto. Decorrida uma hora, lá estava eu invadido pelo troar dos altifalantes anunciando as chegadas e partidas dos autocarros. E pelo cheiro de batatas fritas e de carne assada, que serve para causar a fome a quem a não tinha, pelo menos até ali. Na central de camionagem, havia lojas para todos os gostos e feitios, para satisfazer as mais elementares necessidades e para aguçar o mais oculto consumismo.

(Créditos fotográficos: Jyotirmoy Gupta – Unsplash)

Faltava meia hora para apanhar o transporte até Viseu. Tive de esperar, tendo em vista muita gente e uma casa de banho para, como lá dizia o meu pai, verter águas. À entrada, foi-me pedido cinquenta cêntimos. Paga e não bufes! Não foi uma quantia assim tão exorbitante, não tivesse eu pago já os bilhetes, e não pagassem as já referidas lojas as suas prestações a um consórcio que só vê o lucro… Serviu-me de consolo o facto de que, possivelmente, com aquela esdrúxula cobrança a senhora tenha ganho ali o seu posto de trabalho. Valha-nos ao menos isso.

O tempo ia devagarinho, como se quer quando vamos de viagem. Procurei o cais de embarque. Ali estava eu, comigo mesmo, atirando, ao mesmo tempo, atenções para tudo ao meu redor. Nisto, ouvi uma voz de mulher que me soou a pessoa do Leste, a pedir uma moeda ao senhor do lado. A miséria manda pedir sem parar, ela viria ter comigo. Olhei para o lado. O vestido a dar pelos pés e a restante indumentária confirmaram a identidade dessa pessoa .

“Uma moedinha, senhorr!…”, pediu-me ela, do mesmo modo como o fizera ao meu vizinho no cais de embarque. Meti a mão ao bolso para retirar a moeda que me sobrara do pagamento das minhas necessidades número 1 e coloquei-a na sua mão.

“Quer um calendário, senhorr?”

Sorri, acenei que não.

A mulher afastou-se. A ela juntou-se outra com os trajes iguais. Falavam sobre mim. A outra, estendendo, na minha direcção, um calendário, perguntou: “Quer um calendárrio, senhorr? É de graça.”

Ora, como eu sou um indivíduo de baixa visão, não conseguindo ler nem mesmo as letras gordas dos jornais, passei uma das minhas mãos diante do meu óculo, movendo-a horizontalmente para a direita e para a esquerda, como a querer dizer-lhe que via mal e que de nada me serviria o calendário. As duas mulheres olharam-se e a que me pedira a moeda disse, num Português muito arcaico: “É chiego, o senhorr é chiego.”

E, de seguida, perguntou-me, com a moeda na palma da mão: “Quer a moeda outra vez, senhorr?”

(Imagem gerada por IA – artguru.ai)

Aquilo comoveu-me em toda a amplitude. Aquele gesto mostrou-me que a compleição humana pode ser dignificante, mostrando o seu lado são, ainda que, numa primeira análise, se nos apresente meio podre.

O autocarro para Viseu trocara as voltas e aportara noutro cais. Tive de fazer algumas manobras, perguntando a esta e àquela pessoa para dar com o meu transporte. Entrei numa vaga de “stress”, receando perdê-lo. Um amblíope a contas com um erro alheio. Por fim, lá dei com o autocarro e abeirei-me do condutor. Abri a mensagem do telemóvel, lá estava o bilhete, graças à tecnologia, poupa-se assim no papel, realidade importantíssima nos tempos que correm. Até Viseu, o autocarro iria “comer” muitas paisagens, muito asfalto e uma hora e cinquenta. Tive tempo para tudo, até para dormitar. E, enquanto isto, de ver coisas que me estavam longe, são assim os sonhos ligeiros.

A cidade de Viriato mostrava-se em ruas, monumentos, jardins e na História. E dizia-me que não era ali o meu destino: deveria entrar noutro autocarro para mais uma hora e meia de curvas e de paisagens deslumbrantes, até à vila medieval de Penedono. O motorista anunciou a vila de Sernancelhe, “terras do demo”, terras que tão grande tornaram o Aquilino Ribeiro.

Sernancelhe (pt.wikipedia.org)

O sogro do meu amigo esperava-me em Penedono. Nesta vez, não haveria tempo para revisitar o centro histórico com o seu magnífico castelo, nem o edifício da câmara com a sua exposição, um tanto rara, de instrumentos de tortura e de punição medievais, como a roda, o empalamento, a forca, o garrote espanhol, a “dama de ferro”, o Berço de Judas, a mesa de evisceração, o quebra-joelhos. Como se deve imaginar, são todos eles apetrechos que nos põem a tremer até à medula óssea.

Penedono (en.wikipedia.org)

O meu amigo e a namorada ficaram ainda na apanha da castanha Martaínha. Estava-se na terra da boa castanha portuguesa, bem fresquinha, bem madura, bem saborosa. Por fim, revi os meus amigos. Fizemos um magusto. Já com a noite coberta de mantos bem escuros, eu e o meu amigo fomos para um lugar despovoado fotografar os encantos do céu, aonde não havia poluição luminosa. A noite passou.

O pequeno-almoço de café, torradas, compotas dos mais variados frutos locais e umas brincadeiras de amigos a trazer-nos a um novo dia. Vestimo-nos a preceito, botas de biqueira de aço, agasalhos para o frio e luvas para os ouriços das castanhas. E ala, que se faz tarde! Subimos para o tractor que nos iria levar até debaixo das frondosas copas dos castanheiros. Os terrenos do senhor Almeida estavam perto, mas ficavam no meio de uma distante paisagem de castanheiros.

(agriterra.pt)

Eu já sabia que as castanhas também se dão nos casulos, constatando isso mesmo com as alfinetadas dos ouriços, não obstante usar luvas apropriadas. Se, no seu todo, a Natureza se tivesse munido de armas, como muniu os ouriços das castanhas com os seus espinhos, talvez o homem a não tratasse desta maneira desprezível. Todos temos uma quota parte de culpas, ainda que nos armemos de um duplo baralho de manobras para escamotear a realidade das coisas.

A apanha da castanha parece ter a sua graça. Até parece uma coisa muito simples, sobretudo fácil, mas isso é só no começo. Depois, bem, o pior viria depois… Eu pousava um joelho, desviando os ouriços. De seguida, colocava os dois, por vezes, numa tentativa vã de aliviar o cansaço. Sentava-me, sem me lembrar de sacudir os ouriços e, de imediato, lá dava um salto, lá dava uns ais, lá soltava umas imprecações, pois aquela porra doía a sério! Como se diz na gíria popular, era a arte a entrar no corpo. E como tudo aquilo nos fazia rir!

As castanhas tilintavam nos baldes e, entre as brincadeiras de amigos, também havia espaço para as conversas sérias. Contei o episódio das pedintes do Leste. Então, a namorada do meu amigo atirou-me sem nenhum tipo de preâmbulo: “És mesmo inocente! Essa gente não merece qualquer tipo de pena, e muito menos qualquer esmola. Elas pedem, mas não precisam. São todas umas farsantes, não trabalham porque não querem. E, se mergulhares fundo na vida delas, são bem capazes de ter mais dinheiro do que nós todos juntos. Ela só te devolvia a moeda por descargo de consciência…”

Pode muito bem ser que ela tenha razão, mas eu não quero que todos levem na mesma onda por tabela, nem que todos sejam atirados para o rol dos desonestos, pois, ainda que muitas esmolas sejam imerecidas, quero crer que exista, no meio dos farsantes, alguém que, verdadeiramente, precise das nossas migalhas para comer.

(factualnoticiasces.wixsite.com)

“Creio porque é absurdo”, como diria Tertuliano. Creio que não podemos andar a distribuir esmolas indistintamente, porque a vida não está fácil, e porque não sabemos o dia de amanhã, como bem observava o meu pai. Contudo, esta situação leva-me a recordar uma célebre passagem de alguém, numa situação em tudo similar a esta, que dizia que dava esmolas a todos os que via a pedir, porque alguma da sua esmola iria, com certeza, cair no dilacerado mealheiro de um pobre às direitas. Enfim, voltaria a dar uma moeda à mesma mulher. Prefiro a bondade a perfídia. Quando a referida mulher tentou devolver-me a moeda, só não lhe aumentei a esmola porque muita gente reparara já em nós e também porque, dada a dificuldade de comunicação, dar-se-iam, possivelmente, algumas confusões.

Cito, de memória, uma afirmação do gigante Fernando Pessoa: “Nós não medimos apenas a nossa altura, mas sim a altura do que vemos.”1 Para mim, essa mulher mediu muito mais que a sua altura. Eu vi-a grande…

.

………………………….

.

Nota da Redacção:

1 – Escreveu Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Alberto Caeiro: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo… / Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer, / Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura…”

.

………………………….

.

Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

.

25/11/2024

Siga-nos:
fb-share-icon

José Torres Gomes

José Torres Gomes é natural da localidade de Belinho, no concelho de Esposende. O facto de ser portador da doença degenerativa de Stargardt (ou seja, uma distrofia macular hereditária de início juvenil caracterizada por atrofia macular bilateral) tem-lhe agravado a acção da visão central, a ponto de não ler o que escreve pelo seu próprio punho. O contacto com a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) trouxe-lhe novas esperanças na realização do seu sonho. Concretizou uma formação para a aprendizagem dos "softwares" de leitura de textos digitais, particularmente o “JAWS” (um leitor de ecrã desenvolvido para utilizadores de computadores cuja perda de visão os impede de ver o conteúdo do ecrã ou de navegar com um rato), transitando para o “NVDA” ("non visual desktop access"). A partir de então, passou a escrever regularmente no computador. Assim, em 2010, editou o seu primeiro livro, intitulado “Os ossos também falam”. No ano seguinte, publicou a obra “Nunca mais te vi”. Em 2013, lançou o seu terceiro livro: “Gente sem governo”. Na sua quarta obra, em 2015, experimentou a poesia com “A inquietude do silêncio”, título que agora adapta para o seu espaço de escrita no jornal "sinalAberto". Já em 2018, começa a exercitar a sua escrita no domínio da literatura para a infância e publica “O elefante branco”, ilustrado por Geandra Lipa. Em 2020, edita, igualmente para os mais novos, o livro “Zé Trinca-Espinhas e as letras do lago”, com ilustrações de Alexandra de Moraes. O seu mais recente livro para a infância “O menino que queria ser árvore” (homónimo de uma obra do autor brasileiro Fabiano Tadeu Grazioli) foi ilustrado por Carla Sofia Cardoso. Entretanto, tem participado em várias antologias.

Outros artigos

Share
Instagram