Uma reflexão de última hora

 Uma reflexão de última hora

(Créditos fotográficos: BÙI VĂN HỒNG PHÚC – Pixabay)

Tenho dias em que em que o espelho da casa de banho e, sobretudo, o corpo físico me dizem, sem rodeios, os anos que já vivi. Não tenho qualquer problema em falar sobre um fim que se aproxima. Sinto-o, serenamente, todos os dias, como a areia a fugir por entre os dedos. Quero e procuro festejar a vida em felicidade e é neste sentimento que, antes que seja tarde, faço questão de deixar, a todos os que amo, esta reflexão com o sabor de uma despedida natural, racional, tranquila e, direi mesmo, sorridente.

“Durante 41 anos, primeiro como aluno, depois como docente e
investigador nas universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas
sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à Química e à
Física, foi uma constante na minha vida”, diz António Galopim de Carvalho.
(Direitos reservados)

Poder trabalhar e conviver fazem parte da felicidade que vivo, realmente. Felizmente, nada me impede de trabalhar. E trabalhar, no meu caso, é escrever. Bem sentado, frente ao monitor, como já escrevi tantas vezes, não tenho idade, escrevo horas a fio, todos os dias (os reformados não têm domingos nem feriados, nem férias) em blogues, jornais online (como o sinalAberto) e, em especial, no Facebook, para mais de 40 mil seguidores, na grande maioria, desconhecidos. Deles recebo centenas de comentários repletos de apreço, simpatia e afectos, que me enchem de felicidade e comedido orgulho, permitindo-me um conviver que, embora à distância, me encoraja a continuar. Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

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Entretanto, fui publicando livros, dois na Gradiva, quatro na extinta Editorial Notícias, vinte e seis na Âncora Editora, que tem, neste momento, mais dois prestes a sair, “Os Homens Não Tapam as Orelhas”, em 2.ª edição, com prefácio do general Pedro Pezarat Correia, e “Por Caminhos de Pedra Solta”, com prefácio de Helena Roseta.

Tenho plena consciência, sem que isso me incomode, de que estou a descer os últimos degraus de uma vida cheia de trabalho e de afectos. Mas continuo a escrever, tendo sempre no pensamento o monte de projectos que sei não irei concluir e isso, sim, já me incomoda. Esta é razão da minha pressa, estado de alma que marca o ritmo do meu trabalho. Quero ver publicados dois originais em fase de revisão: “A Professora”, uma história de vida de uma companheira e amiga de há mais de 80 anos, com quem “fundi” a minha, vai para 68 anos, e “Do Laboratório à Cozinha”, que reúne mais de uma centena de experiências culinárias, muitas delas já publicadas na minha página no Facebook.

Durante 41 anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à Química e à Física, foi uma constante na minha vida.

António Galopim de Carvalho: ”Continuo a escrever, tendo sempre no
pensamento o monte de projectos que sei não irei concluir e isso, sim, já
me incomoda.” (cm-evora.pt)

Quando o limite de idade me arrumou, contra a minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que, por amor à arte, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto no espaço da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; refogados, guisados e estufados tomaram o lugar de sulfatados, reduzidos e oxidados; átomos e iões foram substituídos por bagos de arroz, de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa. Quero com isto dizer que a cozinha é, por assim dizer, um outro percurso de prazer e, ao mesmo tempo, um escape.

“A utopia é a força que transforma o sonho em realidade”, afirma António Galopim de Carvalho. (Créditos fotográficos: GCIC Ciências – ciencias.ulisboa.pt)

Tenho em mãos o que se deverá intitular “Nós e as Pedras”, uma pesquisa no sentido de mostrar aos meus concidadãos que tudo, mas mesmo tudo, o que nos rodeia, incluindo nós próprios e toda a biodiversidade, tem origem nas pedras, no conceito antigo da palavra, que abrangia as rochas e os minerais. É, talvez, um sonho concluí-lo, mas o desejo de o dar como tal dá sabor aos meus dias. Há ainda, no horizonte, dar cumprimento a uma incumbência, que consiste em passar a livro toda a documentação escrita e fotográfica existente e a esperança de a poder cumprir é uma das razões da pressa a que aludi atrás. Finalmente, mais do que um sonho, antes uma deliciosa utopia: “E, assim, o tempo se transformou em palavras.” Acontece que não me seria difícil encontrar situações e pensamentos para concretizar esta ideia, mas…

Todavia, sempre disse, escrevi e mostrei que assim era, que “a utopia é a força que transforma o sonho em realidade”.

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03/07/2025

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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