Uma reflexão sobre o tempo que estamos a viver

 Uma reflexão sobre o tempo que estamos a viver

(Créditos fotográficos: Claudio Schwarz – Unsplash)

Estamos a viver um tempo altamente preocupante, não só a nível internacional, como cá dentro deste “torrão” de iliteracia de quase tudo, mercê de um sistema educativo que deu e dá diplomas, mas não deu nem dá esse tudo que tanta falta nos faz.

O poder do feiticeiro reside da ignorância dos seus irmãos tribais. Quer isto dizer que, quanto mais inculto for o povo, mais facilmente é dominado e, até, desprezado pelo poder.

Tornámo-nos um país caído nas lutas entre aparelhos partidários, onde emergem políticos incompetentes e oportunistas, de que a nossa sociedade está cheia, em que, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

(aerc.pt)

Ao aproximar-se a data de comemorarmos os 50 anos de liberdade (apenas a de expressão, de reunião, de criação de partidos, de associações e de coisas assim) é com um sentimento de profunda decepção que me dou conta deste grande número de anos desaproveitados. É, por demais, evidente que não soubemos aproveitar a liberdade que nos foi oferecida, para erradicarmos muitos dos nossos atavismos civilizacionais e culturais.

Vejamos alguns exemplos da percepção quotidiana:

  • “O que é preciso é ter bons padrinhos.”
  • “O gajo é que foi esperto, amanhou-se. Entrou de mãos a abanar e, hoje, anda de Mercedes.”
  • “Estudar para quê? O que interessa é esperteza prò negócio.”
  • “São 230 euros, mas se for sem recibo, a gente fecha os olhos e só pagas 187 euros.”
  • “Quanto mais cedo vier a reforma, melhor.”

Estas e outras frases e atitudes do desenrascanço, do enganar o Estado ou o patrão, ainda perduram em muitos dos nossos compatriotas. Como já escrevi tantas vezes e volto a escrever, a generalidade da classe política – à qual os “capitães de Abril”, há quase 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos –, mais interessada nas lutas partidárias, nos compadrios e nas vantagens do poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional, científica e humanística. Esqueceu-se? Ou entendeu que havia outras prioridades?

(jpn.up.pt)

É evidente que a revolução iniciada com o 25 de Abril de 1974 nos trouxe grandes progressos materiais e sociais, por demais apontados, mas muito aquém do que poderia ter sido, se as competências e as vontades tivessem sido outras.

Mas pouco ou nada mudámos nas mentalidades. Vimos um vislumbre de um real propósito de elevação do nível cultural e cívico dos Portugueses, no fugaz e efémero programa da 5.ª Divisão de Estado-Maior-General das Forças Armadas1, chefiada pelo saudoso primeiro-tenente médico Ramiro Correia, mas não vimos nada que se lhe comparasse em nenhum dos governos constitucionais destes cinquenta anos de democracia. Fez-nos falta a honestidade, o pensamento e a vontade de servir de Melo Antunes2, o “capitão de Abril” que nos deixou cedo demais.

(omelhordeportugalestaaqui.blogs.sapo.pt)

À semelhança do sempre esquecido mundo rural, as nossas cidades têm, ainda, uma lamentável percentagem de analfabetos funcionais, a par de uma classe média a que a escola não deu a educação, nem a formação nem a preparação essenciais a uma cidadania plena, antes. Uma escola que, desde há muito, por falta de visão política, atravessa uma crise, sem solução à vista.

As conquistas na segurança social, nos cuidados de saúde, na ciência, no ensino e no apoio à cultura, conseguidas na vivência em democracia que se seguiu à Revolução dos Cravos, estão a fugir da nossa vida colectiva como areia por entre os dedos. Só a justiça se mantém intacta no seu pedestal.

Perdemos uma parte significativa da independência nacional e assistimos à asfixia e à destruição de muitas das nossas valências económicas. Estamos a viver tempos de miséria e, até, de fome para um número cada vez maior de famílias, de miserável abandono dos idosos, de corrupção descarada e impune e de aumento do número e da riqueza dos ricos. A chamada classe média está a afundar-se, o desemprego está a ressurgir e é mais um incentivo crescente à igualmente dramática emigração de uma juventude qualificada.

Natália Correia (Créditos fotográficos: Arquivo Global Imagens – delas.pt)

Tudo isto e mais alguma coisa foi sabiamente previsto por Natália Correia (1923-1993), grande portuguesa, que deixou nome na poesia e na política (também enquanto deputada à Assembleia da República, entre 1980 e 1991). Estou muito longe de ter lido a obra desta saudosa açoriana de São Miguel, mas o que li – em especial, poesia – sempre me mostrou, pela excelência do conteúdo e da forma, a mulher com quem tive o privilégio de conviver nos últimos anos da sua vida. Quando a procurei, em começos da década de 90 eu era um profissional, a tempo inteiro, com 30 anos de dedicação exclusiva a uma ciência demasiado terra-a-terra (a Geologia), em busca de um outro caminho que tinha o dela e de muitos outros mestres da palavra, por modelo. Prenderam-me a esta lutadora a intransigência com que defendia a liberdade, a solidariedade, a justiça e a cultura, o desassombro, a elevação e a beleza, a força e a energia, que usou na palavra falada e escrita, características que sempre igualei às do também grande e saudoso Ary dos Santos.

“Para que se justifique a nossa vida é preciso que alguém a invente em nós.” Esta frase de Natália Correia faz parte da biografia ‘O Botequim da Liberdade’, escrita por Fernando Dacosta e editada pela Casa das Letras, em 2013. (Créditos fotográficos: Arquivo Global Imagens – delas.pt)

Apraz-me aqui e agora transcrever, pelo que têm de impressionante realismo, algumas premonições desta grande Senhora, trazidas a público por Fernando Dacosta, em “O Botequim da Liberdade” (Casa das Letras, 2013):

  • “Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente.”
  • “O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida.”
  • “Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a pôr gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão.”
  • “As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo.”
  • “Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres.”

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Notas da Redacção:

1 – A 5.ª Divisão de Estado-Maior-General das Forças Armadas foi suspensa a 25 de Agosto de 1975.

Melo Antunes (pt.wikipedia.org)

2 – Ernesto Augusto de Melo Antunes (1933-1999), como regista a Wikipédia, foi, várias vezes, ministro nos governos provisórios. Assumiu as funções de “ministro sem pasta do II Governo Provisório, liderado por Vasco Gonçalves, e assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros nos IV e VI Governos provisórios, de Vasco Gonçalves e Pinheiro de Azevedo, respectivamente”. Na sua participação política, negociou a independência da Guiné-Bissau e integrou o Conselho dos Vinte, o Conselho da Revolução e o Conselho de Estado. Melo Antunes notabilizou-se, igualmente, “por ter participado activamente na elaboração do Programa de Acção Política e Económica, em Dezembro de 1974, e do Documento dos Nove, em Agosto de 1975, conhecido como ‘Documento Melo Antunes’, por dele ter sido o primeiro subscritor”. Refira-se ainda que, entre 1986 e 1988, foi subdiretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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07/12/2023

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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