Uma simplicidade a cheirar bem

 Uma simplicidade a cheirar bem

(Créditos fotográficos: Raychel Sanner – Unsplash)

“Elas estão sempre a acontecer! Sempre foi assim, desde que o mundo é mundo…”

A minha mãe sempre teve, na ponta do seu saber, frases muito suas, que ela bem sabia encaixar nas mais diversas circunstâncias da vida: para quando falecia alguém das nossas relações, para quando se dava alguma tragédia humana, para quando acontecia alguma intempérie ou quando calhava aos incêndios fazerem das suas.

Isto era o resplendor da sabedoria popular. Uma espécie de conformismo, de aceitação. Ver as coisas daquele ângulo é o mesmo que dizer: aceita que dói menos. Vem isto dizer-nos que não adiantam revoltas, que não adianta tugir nem mugir. As coisas aconteceram deste modo porque alguém assim quis… O Deus todo-poderoso, para os crentes. A Natureza toda magnânima, para os panteístas. A força de algo oculto, que tanto pode ser carne como peixe, que não se faz de rogada para erguer a batuta e ditar leis, o vício a mandar no viciado.

(netmundi.org)

Seguir a teoria da aceitação da minha mãe é termos, com certeza, um fio para atar as coisas ruins e as boas num mesmo feixe. O sofrimento acaba quando nos esquecemos dele.

“Sempre foi assim, desde que o mundo é mundo”, afirmava a minha mãe, sem dançar com o sentido das coisas. Claro que este tremendo Universo nem sempre foi assim: estrelas que vieram e se foram; seres vivos que vieram das esponjas verdes e azuis e que já se foram; o Pantalassa e a Pangeia que vieram para viverem uma mutação. O corpo do tempo é uma corrente e cada elo é uma época. Todos os seres físicos e metafísicos fizeram parte de elos que estão muito lá atrás, que estão no agora e estarão no depois, num porvir que esperamos ser prometedor. Houve espécies que se notabilizaram pela sua extinção; outras pela enormidade física ou pelo seu contrário – enfim, refiro-me, aqui, a animais e plantas. Houve ainda homens que foram grandes por darem obras extraordinárias ao Mundo, por travarem batalhas para o Mundo – e houve os bons e os nocivos, mas dos maus que não reze a História…

(Imagem gerada por IA – freepik.com)

Ao longo da corrente do tempo, houve e haverá aqueles cuja simplicidade os fez grandes, uns para o Mundo, outros apenas para quem lidou com eles.

Eu tive um tio. Não sabia ler nem escrever, tinha um défice cognitivo. Também não era capaz de tomar banho sozinho. Contudo, deixou frases e ditos que não fizeram dele um grande, por viver num meio pequeno. Sempre que o via, ele dizia, com a mão estendida para mim: “Aperta cá esta mão!”

Um dia, eu disse-lhe que tinha dado um tombo de bicicleta. Ele olhou para mim com um brilhozinho nos olhos e apenas disse isto: “Meu amigo, lá calha…”

Reparem, ele não fez aquelas perguntas corriqueiras: “Aleijaste-te muito? Como foi lá isso?” Se me tivesse aleijado, eu não estaria, ali, naquela tranquilidade. Os tombos são a “herança” para quem anda de bicicleta. E ele sabia disso muito bem…

Em Setembro de 2009, morreram três bombeiros de Esposende. Um deles era da minha terra e um dos meus melhores amigos. Após um dia do funeral do meu amigo, eu, a minha mãe, duas das minhas tias e esse meu tio – todos irmãos, dos cinco presentes, apenas eu faço parte do elo do agora – gozávamos do bom sol outonal, numa eira granítica, a maior da aldeia, a considerarmos que “era a maior” porque aquela casa fora uma das mais fartas da região. Mas o leito da fartura minguou com o correr dos tempos.  Então, dizia uma das minhas tias, referindo-se aos pais do meu amigo: “Coitada daquela mãe, pobre Generosa, ela cortava a alma com aquele choro. Mas aquele Cândido também não lhe ficava atrás. Aquilo metia dó, aquilo fazia chorar as pedras…”

(rtp.pt)

E o meu tio, sempre muito metido para dentro, sempre muito na sua, atirou, sem até ali ter dito palavra: “Meu amigo, o que o Pedro era à mãe, era ao pai!”

Eu ouvi, naquele instante, uma das frases mais profundas. E que me fez pensar como pode uma pessoa que nunca segurou um giz e que nunca teve uma ardósia “sentada” nos seus joelhos dizer uma coisa destas.

A sua simplicidade cheirava bem. Era muitíssimo inteligente.

(Imagem gerada por IA – freepik.com)

Se lhe pediam um cigarro – e muitos faziam-no para o ouvir –, ele dizia, fazendo um gesto meio obsceno, mas que a ele não ficava mal: “Ó, ó, vais mamar…” Então, deixava rolar algum tempo, o corpo e o espírito sempre na doçura da calma, e dizia, tirando agilmente um cigarro do maço: “Queres um cigarrinho? Pega lá um cigarrinho. Não me tomes por um mão-de-vaca, que não dá nada a ninguém!”

Não é meu costume fazer publicações dos que partem nas redes sociais, mas, aquando da partida do meu tio, resolvi publicar uma “estátua” das suas recordações: “Tchau, tio Eduardo! A sua partida foi o cair do pano de uma geração. Foi o último e o que viveu mais. Tio Eduardo, as suas famosas frases ecoam na minha e na memória de muita gente. E todas elas inteligentemente contextualizadas no guião das conversas: Anda, que vais apanhar poucas… Vais mamar… Meu amigo… Lá calha… É a vida… Era para ser, mas falhou… Isso é cá comigo… Meu amigo, só se perde as que vão pelo ar… Tens cá uma estola… O tempo é um voar…

E prossegui nessa publicação: “Tio Eduardo, você era a pessoa mais simples, docemente simples, sempre engraçado com os palavrões a intercalarem as conversas, mas nada lhe ficava mal. Declarava-me, ainda há pouco tempo: Ná, que eu já tenho vinte anos. Aqui, o rapaz já fez vinte anos.

Na mesma circunstância, conclui: “Tio Eduardo, partiste serenamente, depois de muito sofrimento. Porém, verdade seja dita, nunca te ajoelhaste no altar das lamentações. Já estás ao lado das tuas irmãs e dos teus irmãos e do teu pai e da tua mãezinha, e por ela rompias o teu pensar. Uma mãe é sempre uma mãe. Dá um beijo na minha. Para ti, o meu coração terá sempre um cantinho com o perfume de uma flor. Gosto de ti, meu amigo…”

(Créditos fotográficos: Christophe Maertens – Unsplash)

O meu tio foi um grão na caixa do milho da casinha da eira. O meu coração guardou para ele a melhor das suítes. Os humildes tornam-se grandes. E só os grandes se conservam humildes.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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28/11/2024

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José Torres Gomes

José Torres Gomes é natural da localidade de Belinho, no concelho de Esposende. O facto de ser portador da doença degenerativa de Stargardt (ou seja, uma distrofia macular hereditária de início juvenil caracterizada por atrofia macular bilateral) tem-lhe agravado a acção da visão central, a ponto de não ler o que escreve pelo seu próprio punho. O contacto com a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) trouxe-lhe novas esperanças na realização do seu sonho. Concretizou uma formação para a aprendizagem dos "softwares" de leitura de textos digitais, particularmente o “JAWS” (um leitor de ecrã desenvolvido para utilizadores de computadores cuja perda de visão os impede de ver o conteúdo do ecrã ou de navegar com um rato), transitando para o “NVDA” ("non visual desktop access"). A partir de então, passou a escrever regularmente no computador. Assim, em 2010, editou o seu primeiro livro, intitulado “Os ossos também falam”. No ano seguinte, publicou a obra “Nunca mais te vi”. Em 2013, lançou o seu terceiro livro: “Gente sem governo”. Na sua quarta obra, em 2015, experimentou a poesia com “A inquietude do silêncio”, título que agora adapta para o seu espaço de escrita no jornal "sinalAberto". Já em 2018, começa a exercitar a sua escrita no domínio da literatura para a infância e publica “O elefante branco”, ilustrado por Geandra Lipa. Em 2020, edita, igualmente para os mais novos, o livro “Zé Trinca-Espinhas e as letras do lago”, com ilustrações de Alexandra de Moraes. O seu mais recente livro para a infância “O menino que queria ser árvore” (homónimo de uma obra do autor brasileiro Fabiano Tadeu Grazioli) foi ilustrado por Carla Sofia Cardoso. Entretanto, tem participado em várias antologias.

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