João Hingá: um homem do tamanho do seu país

(Créditos fotográficos: 4motions Werbeagentur – Unsplash)
Reencontrei João Hingá na Feira do Livro de Coimbra. Cada vez que conversamos, sinto que abro a porta de uma biblioteca viva e que tenho ainda muito a aprender, especialmente sobre esta cidade que me acolheu há várias décadas. Nascido em 1939, tem a vivacidade de um gaiato que soube escolher os caminhos que engrandecem o seu percurso. É natural de Ansião e identifica-se com um apelido que supõe ter raízes sicilianas. Ficou órfão de pai, cantoneiro municipal, aos oito meses de idade. Teve seis irmãos, mas só conheceu um, que faleceu em 2023. A mãe, que inesperadamente perdeu o marido e cinco filhos, “teve de se lançar à vida e foi trabalhar para o hospital da Misericórdia de Elvas”. João Hingá acompanhou-a e ainda se recorda dessa primeira viagem até à cidade raiana. O irmão ficou ao cuidado de um familiar.

Pouco depois, com sete anos, João entra na Casa do Gaiato, comunidade instituída, em 1940, pelo padre Américo Monteiro de Aguiar (ou Pai Américo). Dali saiu, aos 22 anos, quando casou. Os seus padrinhos de casamento foram o padre Carlos Galamba e uma funcionária da Obra da Rua.
João Hingá confirma o lema do Padre Américo: “Não existem rapazes maus.” É, de facto, uma excelente pessoa e uma biblioteca de carne e osso cheia de memórias e de experiências. Começou a trabalhar, aos 13 anos, na oficina de quem o colocou na Casa do Gaiato, João Machado Júnior, filho do canteiro-decorador e escultor João Augusto Machado. Também seduzido pela influência da Associação dos Artistas e pela Escola Livre das Artes de Desenho, orientada por António Augusto Gonçalves, o adolescente João Hingá (que afirma não ter jeito para o desenho nem para as contas) passou a frequentar a oficina localizada na Rua da Sofia para aprender a arte de talhar e de desbastar a pedra de Ançã ou de polir as rugosidades do mármore de Estremoz. Assim, aparelhou muita pedra tumular para o cemitério da Conchada e também preparou e cortou a pedra que serve de emblema do edifício do Turismo de Coimbra, no Largo da Portagem.

Sempre teve paixão pelos livros. Frequentou a escola primária na instituição que o acolheu e, como autêntico autodidacta, aproveitou as oportunidades que o destino lhe reservou. Ainda não era oficialmente adulto quando conheceu a labuta diária da Gráfica de Coimbra. Ali se cruzou com os cónegos Manuel Paulo e Urbano Duarte, bem como com o padre Valentim Marques, companheiro de caça e amigo do poeta Miguel Torga. Como escreveu o jornalista António Barreiros, a Gráfica de Coimbra “representou gerações de tipógrafos, linotipistas, revisores, encadernadores, paginadores”.


Foi nesta empresa da Diocese de Coimbra – entretanto, declarada insolvente após 95 anos de actividade – que João Hingá começou a operar como linotipista, a compor textos para impressão e a lidar com a organização dos tipos móveis (matrizes), aperfeiçoando a destreza no teclado. Isso exigia-lhe precisão, rapidez e conhecimentos técnicos acerca da máquina que funde em bloco cada linha de caracteres tipográficos.
Já na Atlântida–Livraria Editora, para a qual foi convidado um ano depois de casar, trabalhou como monotipista, em que a composição tipográfica possibilitava fundir os caracteres individualmente, diferenciando-se da máquina Linotype, que fundia linhas inteiras. Foi na Atlântida1 que, em 1965, Manuel Alegre publicou o seu primeiro livro de poesia, “Praça da Canção”, no qual recorda ter sido preso, em Maio de 1963, enquanto resistente ao regime do Estado Novo. João Hingá e João Seixas compuseram este livro e refere, modestamente, que o poeta não se esqueceu de colocar as iniciais dos seus nomes.

Voltou a exercer na Gráfica de Coimbra. Foi articulista no jornal Correio de Coimbra e na imprensa regional. A reforma levou-o a aprimorar a revisão e a correcção de textos académicos (sobretudo, no domínio do Direito) e de provas de imprensa. “Nas revisões, aprendi muito com Miguel Torga, que procurava não repetir palavras nos seus livros”, declara João Hingá, a quem dedico esta crónica2, porque, como diz Manuel Alegre, “um país tem o tamanho dos seus homens”.
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Notas:
1 – O livro “Praça da Canção”, da autoria de Manuel Alegre, foi editado, em 1965, por Cancioneiro Vértice – Primeiras Edições e composto e impresso nas oficinas da Atlântida, em Coimbra.
2 – O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 29 de Junho) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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30/06/2025