Memórias: Botequim (2)

 Memórias: Botequim (2)

Natália Correia retratada por Bottelho. (pt.wikipedia.org)

Naquela mesma noite, de que falei na segunda-feira (edição de 17 de Novembro), no Botequim, terminado o jantar-convívio, calhara eu ficar defronte de Natália Correia. Não precisamente em frente, mas num lugar ao lado de quem estava mesmo à sua frente, não recordo já quem. Por duas vezes, um homem abeirara-se dela e dissera qualquer coisa ao ouvido. À terceira, ela dispara para ele: “Desapareça! Você é um chato intelectual.”

Natália Correia: retrato de uma poetisa desassombrada. (ensina.rtp.pt)

Perante o brado daquela voz potente, fez-se um quase-silêncio. Natália fez uma ligeira pausa: “Sabe o que é um chato intelectual?” Virou-lhe a cara e completou: “É um parasita que se mete no púbis da minha inteligência.” O homem retirou-se entre o envergonhado e o riso. Ela olhou-me e rematou, dirigindo-se mais através de mim do que a mim, em particular: “Este homem anda a declarar-se-me há 20 anos. Já lhe disse que não quero nada com ele.”

Fez um tempo e completou, primeiro em tom baixo, como se de si para si: “É ele e o outro! Não sei onde se meteu, hoje, o outro!” Olhou-nos, a mim e aos outros, e como quem se recorda, num subir de tom forte e de auto-espanto: “Ah, pois não! Suicidou-se por minha causa há mais de 15!” Natália não mentia, nem inventava. Era excessiva porque o talento era tanto que não lhe cabia na imaginação.

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20/11/2025

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Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

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