Que nota davam Sócrates e Aristóteles?

 Que nota davam Sócrates e Aristóteles?

Sócrates (freemason.pt) e Aristóteles (pt.quizur.com)

O primeiro debate deste ciclo presidencial colocou frente a frente André Ventura e António José Seguro. Palavra puxa palavra e, como sempre, tudo se esfumou num instante, antes de darmos por nós mergulhados nas intermináveis horas de análises que invariavelmente se seguem.

André Ventura (en.wikipedia.org) e António José Seguro (pt.wikipedia.org)

Resisto, contudo, à tentação de ler debates políticos através da grelha simplista dos “vencedores” e “derrotados” que tanto entusiasma comentadores, público e manchetes. Um debate presidencial é, antes de mais, uma conversa sobre o país. Pode ter dois vencedores ou dois vencidos; pode até não ter verdadeiros protagonistas, quando cada interveniente se limita a falar para o seu próprio círculo de fiéis.

Há, contudo, noites que exigem nomeações cruas e taxativas. Esta foi uma delas: André Ventura perdeu – e perdeu de forma clara, mais do que António José Seguro terá propriamente vencido.

Repete-se frequentemente, entre amigos, colegas ou comentadores, que Ventura floresce em formatos de “gameficação” política: no duelo a dois, na réplica e tréplica, no ringue mediático onde, em teoria, só triunfa quem domina o verbo. Mas confundir aquilo que Ventura faz com retórica é não só desconsiderar a história do termo, como ignorar o que significa, no essencial, sustentar um argumento no espaço público democrático.

A retórica nasce na Grécia Antiga, berço da democracia, quando pensar e falar eram gestos indissociáveis da vida pública. Ainda no século V a.C., Sócrates – figura inaugural da filosofia ocidental e mestre de Platão – sustentava que o debate é a busca conjunta pela verdade. Dialogar significava interrogar, pensar com o outro, desmontar ideias com paciência e humildade, num exercício em que a razão avançava passo a passo.

Acrópole, em Atenas, na Grécia. (Créditos fotográficos: Constantinos Kollias – Unsplash)

Um século depois, Aristóteles, discípulo de Platão, sistematiza a grande teoria do discurso persuasivo: define a retórica como a arte de convencer pela razão, pela credibilidade e pela emoção. Para o filósofo, a força de um discurso reside no equilíbrio entre: i) logos – a consistência lógica dos argumentos; ii) ethos – a autoridade ética de quem fala; e iii) pathos – a capacidade de mobilizar sentimentos sem resvalar para a manipulação. A eloquência, insistia o filósofo, não é estridência alguma: é proporção, clareza, rigor e um respeito intelectual que reconhece no outro não um adversário a humilhar, mas um interlocutor a persuadir.

(cercasiunfine.it)

A distância entre esta tradição e o que vimos no debate é quase intransponível.

Ventura habita um outro campo. Imagina-se num território onde a retórica se dissolve em espetáculo e a política se reduz a alquimia barata. Recicla “slogans” populistas, alimenta antagonismos morais e divide o mundo num palco maniqueísta onde os bons enfrentam os maus, cuidadosamente escolhidos para sustentar o seu enredo. A partir desta clivagem artificial, julga-se autorizado a despejar impropérios sobre todos os que encaixam nas categorias que ele próprio inventou para demonizar.

A tudo isto acrescenta-se uma técnica sobejamente reconhecida: impedir o adversário de pensar, falar ou sequer respirar. Ventura interrompe, eleva a voz, esbraceja. É, no fundo, o reconhecimento tácito de que as suas ideias, despidas da coreografia agressiva, não sobreviveriam a um confronto sereno com as ideias de outro. E importa dizê-lo sem rodeios: não é mestre da retórica quem confunde debate com violência verbal, quem troca a arte argumentativa pela teatralidade hostil, quem acredita que persuadir é anular. Se isto é retórica, estamos realmente perdidos.

(fernandonogueiracosta.wordpress.com)

Um laivo de esperança invade-me sempre que assisto a um debate com André Ventura. Por breves instantes, julgo que ninguém poderá realmente apreciar tamanha selvajaria. Façamos por acreditar que ainda são muitos os que entendem o debate público como um exercício de responsabilidade intelectual, e não como um campeonato de berros.

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Nota do Director:

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27/11/2025

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Lourenço Ferreira

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Lourenço Ferreira é mestrando em Comunicação Social, investigador na área da Comunicação Política e colaborador em projetos de Educação para a Cidadania. Interessa-se por temas como a opinião pública, o discurso político e o impacto das novas formas de mediação na cultura contemporânea. Escreve com regularidade sobre política, sociedade e “media”, procurando sempre um olhar crítico e fundamentado sobre os fenómenos do seu tempo.

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