A cavaleira portuguesa: Antónia Rodrigues (1577)

 A cavaleira portuguesa: Antónia Rodrigues (1577)

Fotograma do filme “Elizabeth: The Golden Age”, de Shekhar Kapur.

Lisboa – 1619

Abrem-se as portas da sala do palácio real onde está o rei D. Filipe II de Portugal e III de Espanha.

Antónia Rodrigues e o filho adolescente, de 16 anos, são conduzidos perante o monarca. Fazem uma vénia. O rei ordena para se levantarem. Profere umas breves palavas.

A tua história e os teus feitos correram Portugal e Espanha.

D. Filipe II de Portugal,
III de Espanha.

O rei D. Filipe II de Portugal e III de Espanha está de visita a Lisboa e convocou-te ao palácio real para te conhecer.

O monarca não tem memória de uma mulher assim nas Espanhas, seja nas Américas, nas Índias ou em África. Como gratidão, aumentou-te de dez para 15 mil reis a pensão anual e, ainda, concedeu-te uma fanga (cerca de 17 litros) de farinha por mês. O teu filho irá para Madrid como moço da Real Câmara.

Há muito que já não omites o teu verdadeiro nome. És Antónia Rodrigues, tens 39 anos e toda a gente do reino te conhece por Cavaleira Portuguesa.

Aveiro – 1591

Casa pobre do final do século XVI. A mulher grávida cozinha sopa num pote. O homem bebe uma caneca de vinho. Os cinco filhos (com 16, 11, oito, cinco e três anos) brincam uns com os outros, embora o mais velho se mostre enfadado.

Aqui estás tu, Antónia Rodrigues, uma menina de 11 anos, irmã de tantos irmãos e, em breve, de mais um, se sobreviver ao parto.

A tua mãe nada mais pode fazer do que cuidar dos filhos e o teu pai é um pobre pescador, quase sempre ausente.

Se até agora o pão escasseia em casa, a fome vai partilhar a mesa com o nascimento do vindouro.

Em casa tão pequena e indigente, não há lugar para todos, é sabido.

Praia. A menina Antónia luta com dois rapazes, à paulada. Os moços são derrotados e começam a fugir.

(ouvir)

Apesar da tua breve idade, se alguém deve sair de casa és tu, Antónia Rodrigues, pois todos te veem como irascível. Nem os teus irmãos, moços rijos, criaram tantos problemas como tu. Ninguém se lembra de ver uma rapariga tão travessa, aventureira, agressiva e desobediente.

Os teus pais já decidiram, Antónia Rodrigues. Vais viver com a tua irmã mais velha, que está casada em Lisboa e tem uma vida mais desafogada do que a mísera casa dos teus pais. Estarás entregue à tua irmã, à tua sorte e, principalmente, ao destino que Deus quiser de ti, como é assim que todos creem.

Lisboa – 1592

Antónia Rodrigues está na rua, junto de um grupo de rapazes da mesma idade.

Excerto de livro “Coroagrafia Portugueza”.

Agora, Antónia Rodrigues, estás em Lisboa aos cuidados da tua irmã, mas a maior parte do tempo passas na rua, com rapazes da tua idade. Não és menos por seres rapariga. Bem pelo contrário, és respeitada e temida pelos jovens teus companheiros.

Por uma pequena razão, Antónia envolve-se numa luta com um rapaz, saindo vencedora do confronto. Os outros moços respeitam-na.

E, se algum proferir uma palavra menos conveniente, não hesitas em impor a tua justiça. Usas a lei do mais forte, a tal que impõem a ti, assim como a todas a raparigas do reino. Mas tu não és igual às demais, porque és livre, rebelde e destemida.

Casa da irmã da Antónia. A jovem Antónia está num canto da cozinha. Tem um aspeto amargurado.

A irmã dirige-se a Antónia e profere algumas palavras repreensivas. Aponta com o braço para uma zona da cozinha, supostamente onde está o trabalho que ela deve fazer.

A Antónia renuncia a ordem e vira a cara. A irmã ergue a mão para dar uma bofetada, mas é travada pela mão da menina rebelde.

Desde que chegaste a casa da tua irmã, a tua vida tem sido um ror de problemas e de violência. Era suposto seres uma menina como as outras, cumpridora dos lavores caseiros, discreta e, sobretudo, obediente. Era assim que a tua irmã te queria em casa.

Mas tu, Antónia Rodrigues, és o oposto. E por mais violência física que vergue o teu corpo, tu cerrarás os dentes e os punhos e passarás à contraofensiva.

O cunhado lança-se direto à Antónia, com um pedaço de corda grossa na mão, e desfere uma série de golpes no seu corpo.

Antónia refugia-se noutro canto da cozinha e encolhe-se. Tem um olhar cerrado e decidido.

A tua irmã já não te consegue deter. É o teu cunhado que assume o papel de algoz. Reages até onde a tua robustez física te permite, porque a tua força mental é inesgotável.

Tudo isto é abominável e não pode durar muito mais tempo. Amanhã, vais sair de casa, não como das vezes anteriores, por um ou dois dias, mas desta vez para sempre. Está decidido, assim será.

Praça do Comércio. Movimento típico de uma praça na Lisboa de final do século XVI.

Praça do Comércio, Lisboa (Pintura de Dirk Stoop, início do século XVII)

Daqui, da Praça do Comércio, em Lisboa, partem e chegam caravelas e naus de todo o mundo.

Sabes, Antónia Rodrigues, que dentro de dias vai partir para Mazagão, em Marrocos, uma caravela carregada de trigo.

Está atracada a caravela Nossa Senhora do Socorro, que irá para Mazagão (atual El Jadida), em Marrocos.

Vários homens carregam sacos às costas para o interior da caravela.

O nome Nossa Senhora do Socorro é um bom prenúncio para te afastares da tua vida imperfeita.

Mas, nos navios, não aceitam mulheres. Sendo assim, nada mais te resta senão te disfarçares de rapaz.

Antónia Rodrigues está vestida de rapaz, com o cabelo curto. Aproxima-se do mestre da caravela que está, na entrada da embarcação, a controlar o carregamento.

Antónia fala com o mestre. Este abana negativamente a cabeça. A jovem insiste.

Se não te virem o corpo – e nunca o vais mostrar -, nada te impedirá de seres doravante António Rodrigues, jovem moço de muito orgulho e sangue quente, disposto a enfrentar qualquer trabalho, assim como qualquer mouro.

O mestre da caravela não está inclinado para admitir jovens imberbes, mas tu, António Rodrigues, insistes junto do comandante e argumentas o quanto poderás ser útil.

Dizes ainda que, para além da força do trabalho, sabes manejar a espada e que não pestanejas se tiveres de cortar o pescoço a algum “infiel” que renegue as santas cruzes que estão impregnadas nestas velas.

O mestre olha para a Antónia ainda com alguma relutância, mas agora escuta-a com mais atenção.

E mais, dizes que não serás mais do que um simples grumete sem remuneração, pois, para ti, bastará ter comida a bordo.

Perante tanta insistência, e já que é a troco de quase nada, o mestre acede ao teu pedido, Antónia Rodrigues. Irás partir na caravela Nossa Senhora do Socorro rumo a Mazagão. Depois de desembarcares nesta praça portuguesa, em Marrocos, a tua vida vai dar uma pirueta de 180 graus.

Rio Tejo – 1593

Caravela portuguesa (Direitos reservados)

Esta caravela já viu mundos com a bandeira portuguesa hasteada. Mas, agora, o nobre estandarte português foi substituído pelas armas espanholas.

Faz 13 anos que Portugal perdeu a independência para Espanha, fundindo-se os dois impérios.

A memória de Alcácer-Quibir ainda é um pesadelo presente nos portugueses.

A 4 de agosto de 1578, o exército português, em massa, liderado pelo rei D. Sebastião, encetou uma suicida ofensiva no norte de Marrocos contra um poderoso sultão que liderava um vasto exército.

Fotograma do filme “Non ou a vã glória de mandar”, de Manoel de Oliveira.

(ouvir)

A derrota portuguesa foi esmagadora. O rei morreu, ficando traçado o mesmo destino para grande parte da nobreza lusa.

Desaparecido em Alcácer-Quibir, D. Sebastião não tinha descendentes, facto que desencadeou a crise dinástica de 1580.

D. Filipe II de Espanha acabou por ser reconhecido como rei de Portugal, por ser o parente legítimo mais próximo de D. Sebastião.

Porto comercial.

Nas Cortes de Tomar de 1581, D. Filipe II de Espanha e I de Portugal acordou manter e respeitar a língua, os costumes e os privilégios dos portugueses.

De igual modo, comprometeu-se a honrar os cargos da administração central e local, da justiça e da corte, assim como da gestão das guarnições e das frotas da África e da Índia.

As terras descobertas ou conquistadas pelos portugueses passaram a ser territórios da jurisdição do Conselho de Portugal.

O reinado de D. Filipe I foi relativamente tranquilo. O poder central espanhol pouco interferiu nos assuntos relativos a Portugal, que continuavam a ser administrados por portugueses.

Mas, nos reinados de D. Filipe II e de D. Filipe III, a situação evoluiu para uma crescente tensão.

Os Países Baixos, que mantinham um conflito com Espanha, apoderam-se de diversos territórios administrados pelos portugueses em África, na Ásia e em parte do Brasil.

Pernambuco, Brasil, sob o domínio neerlandês, em 1630.

A burguesia portuguesa começou a empobrecer e a nobreza perdeu privilégios e influência. Portugal passou a ser governado, a partir de Madrid, por espanhóis.

Uma parte da nobreza portuguesa, que antes apoiou o poder de D. Filipe I, passou a conspirar contra Espanha, acreditando que contavam com a adesão do clero, da burguesia e do povo.

Em finais de 1640, uma revolta na Catalunha mobilizou todo o exército espanhol da Península Ibérica.

No dia 1 de dezembro de 1640, um grupo de nobres, intituladoOs Quarenta Conjurados”, invadiu o Palácio Real, no Terreiro do Paço, em Lisboa, prendeu a duquesa de Mântua, vice-rainha de Portugal, e matou Miguel de Vasconcelos, secretário de Estado.

Restauração, 1 de Dezembro de 1640.

Com o apoio de quase toda a população, estava restaurada a independência de Portugal.

D. João, duque de Bragança, foi aclamado rei. Será João IV de Portugal.

(ouvir)

Atlântico – 1593

A caravela Nossa Senhora do Socorro está no alto mar. Antónia Rodrigues, vestida de grumete, esfrega o chão do barco.

Nunca te furtaste a um trabalho na caravela, Antónia, ou melhor, António Rodrigues. Trepas aos mastros com igual mestria com que limpas o chão. Manejas a espada com igual perícia com que manobras a escova. Tu és mais um entre a tripulação e ninguém ousa dizer que és menos do que os outros, porque não há nada que eles executem que tu não faças.

Caravela portuguesa (Direitos reservados)

Pensas por que razão a circunstância de ser mulher merece desconsideração e desapreço, se não é possível existir um mundo sem mães, filhas e avós.

De nada te valerá cogitar pois se nesta caravela as tuas vestes não ocultarem o teu sexo, estarás condenada por infame perjúrio. E, talvez ainda pior, serás lançada sem dó nem piedade ao animalesco apetite macho da tripulação.

Por tudo isto, aqui és o António, filho do Rodrigues, senhor teu pai, por quem matarás quem ofender a sua honra.

Mazagão (atual El Jadida), Marrocos – 1594

A fortaleza de Mazagão é um importante interposto da rota marítima para a Índia e da costa africana. Por isso, aqui se concentra um contingente de soldados para proteger os navios que atracam, vindos do norte ou do sul.

Fortaleza de Mazagão (atual El Jadida), em Marrocos. (Fonte: Wikipédia)

A caravela que serviste, António Rodrigues, já amarrou junto à fortaleza, mas há um problema para resolver. A quantidade de trigo que era suposto ser carregada em Lisboa não corresponde à desembarcada em Mazagão.

Diogo Lopes de Carvalho, capitão-mor de Mazagão, quer apurar o que se passou. Nada pode ter acontecido sem o conhecimento do mestre da Nossa Senhora do Socorro.

António Rodrigues, ouviste uns zumbidos de que uns sacos de trigo foram desviados da caravela, em Lisboa. Pela tua honra, estás disposto a contar o que escutaste.

Mas sabes que, se narrares o que ouviste, não poderás regressar a Lisboa na Nossa Senhora do Socorro, pois alguém se encarregará de te silenciar para sempre.

Antónia é recebida por Diogo Lopes de Carvalho e conta-lhe o que ouviu na caravela.

O capitão-mor acredita no teu testemunho, António Rodrigues. Vai castigar os prevaricadores e proteger-te de represálias. Não embarcarás na Nossa Senhora do Socorro e servirás a hoste defensiva de Mazagão como soldado de infantaria.

Mazagão – 1596

Por diversas vezes, Mazagão tem sido atacada pelas forças mouriscas. Em todas as investidas tens demonstrado valentia e mestria com as armas, António Rodrigues. Já ninguém duvida do teu destemor e muitos acreditam que poderás ascender na carreira militar, tal é a tua coragem e audácia.

Nos campos junto à fortaleza de Mazagão, Antónia Rodrigues e os companheiros militares treinam com armas.

Fora dos combates, não enjeitas a borga e a camaradagem, mas de uma coisa tu não prescindes: a discrição do teu corpo.

Chegou a hora de recolher aos aposentos. Cansada, Antónia Rodrigues deita-se na cama.

Gibão de couro.

Nunca deixas de usar o gibão apertado e as ceroulas, mesmo quando dormes. E quanto à higiene pessoal, és reservada quanto baste para preservares a tua identidade de António.

No dia seguinte, um marroquino segreda um recado a Antónia, mostrando-se esta bastante interessada.

Mazagão é um lugar perigoso e de intrigas. Conseguiste saber, pela boca de um marroquino, que um grupo de guerreiros mouros pretende atacar e destruir os campos de cultivo próximos da fortaleza.

A Antónia Rodrigues conta ao capitão-mor Diogo Lopes de Carvalho os planos do grupo mouro.

O capitão-mor escuta-te com atenção, mas ainda mais o surpreendes quando lhe pedes umas dezenas de homens para, sob o teu comando, abortar o intento do inimigo e destruir o seu batalhão.

Talvez por lhe parecer que tu já tens provas de bravura e executarás com mérito a nobre missão, o capitão-mor aprova a tua estratégia.

Campos. Ao cair a noite, um batalhão de homens comandados por Antónia aguarda, escondido, a chegada dos mouros.

Se a tua fonte estiver certa, os mouros virão esta noite para destruir as searas e, assim, sabotar Mazagão.

Sorrateiramente, um grupo de guerreiros mouros aproxima-se dos campos. Os militares portugueses mantêm-se camuflados nas suas posições.

Aí estão eles, os mouros, cobertos pela luz ténue da noite. Aproximam-se, silenciosos, dos campos de cereais. Mal sabem que em cinco segundos…

Um…

Dois…

Três…

Quatro…

Cinco…

… tu vais gritar:

“A eles! A eles!”

Fotograma do filme “Elizabeth: The Golden Age”, de Shekhar Kapur.

Os soldados comandados por Antónia lançam-se sobre os mouros, que são apanhados de imprevisto. Surpreendidos pela emboscada, os mouros são presas fáceis. Poucos são os que conseguem fugir e a maioria rende-se, implorando perdão.

Os militares portugueses, comandados por Antónia Rodrigues, escoltam os prisoneiros mouros. Entram na fortaleza.

Aqui estás tu, António Rodrigues, triunfante, levando os prisioneiros para a fortaleza. Poderão ser moeda de troca ou vendidos como escravos.

Mazagão aclama o teu feito, António Rodrigues. Sabes que cumpriste o que prometeste ao capitão-mor e, agora, dele esperas uma recompensa.

No dia seguinte, Antónia Rodrigues é recebida pelo capitão-mor.

O capitão-mor saúda-te e cobre-te de elogios. A grande recompensa é quando ele te diz que vais ser nomeado oficial de cavalaria. Nunca sentiste tanto orgulho, como António ou como Antónia.

A Antónia Rodrigues está radiante. Com meia dúzia de cavaleiros, passeia por Mazagão.

Uma, duas, três e mais vezes, António Rodrigues, investido de cavaleiro, defrontas os mouros que, por estarem na sua terra e vendo-se ameaçados por uma cultura e religião diferentes, por diversas vezes atacam Mazagão.

Em todas as ofensivas, mostras destreza nas armas e és exímio na arte de cavalgar.

Aqui estás tu, António Rodrigues, mais uma vez, a investires contra os mouros. Com a espada em riste, gritas: “A eles, a eles!”, ao mesmo tempo que dás ordem aos cavaleiros para avançarem.

(ouvir)

Não és só venerado em Mazagão. O teu nome, António Rodrigues, já chegou a Lisboa e a Madrid.

Dominas os cavalos, até os mais bravos, como poucos. E essa competência é fundamental em combate.

Na tua montada, com a mesma facilidade abalroas ou esgueiras-te do inimigo. E com a espada, que gritas ser em nome do Deus cristão, fazes o resto.

Mazagão – 1597

Casa fidalga. O António frequenta um sarau em casa de D. Diogo de Mendonça. Cumprimenta as damas como jovem cavaleiro que é.

A tua condição de arrojado oficial cavaleiro não passa despercebida às jovens damas casamenteiras.

Com frequência, és convidado para saraus como este em casa de D. Diogo de Mendonça.

És um dos jovens mais pretendido pelas moças fidalgas de Mazagão, mas sabes que podes estar a entrar num jogo perigoso.

A tua identidade tem de ser preservada a todo o custo, sob o risco do teu presente glorioso ficar manchado pelo crime de perjúrio.

A jovem D. Beatriz de Meneses, filha de D. Diogo de Mendonça, não tira os olhos de Antónia. Quando esta cruza o olhar com a dama, logo é correspondida com um proeminente sorriso.

Entre as várias donzelas que te olham enternecidas, há uma que se destaca pela sua indisfarçável afeição a ti, António Rodrigues. É a jovem D. Beatriz de Meneses, filha do anfitrião desta casa, o mais influente fidalgo de Mazagão.

A jovem Beatriz dirige-se a Antónia e iniciam uma conversa.

Tens de ter cuidado, mas também não podes ser descortês, porque, afinal, és o cavaleiro mais distinto desta praça portuguesa.

Rua de Mazagão. No dia seguinte, Beatriz aborda Antónia. Conversam. A jovem fidalga está euforicamente sorridente.

Antónia não se sente confortável. Todavia, não deixa de ser simpática. Tenta despedir-se da Beatriz, mas esta insiste na conversa.

A jovem Beatriz de Meneses é simpática e bonita, nada mais do que um cavaleiro deseja cortejar. Não preciso de te lembrar de que tu não és António, mas sim Antónia, e que aprecias, ainda que nem às paredes confesses, um jovem oficial de Mazagão. É mais um dos teus segredos e ninguém saberá.

Casa fidalga. D. Diogo de Mendonça promoveu mais um sarau na sua casa. Novamente, o cavaleiro António foi convidado, em nome do anfitrião e da sua filha Beatriz.

(ouvir)

A jovem Beatriz de Meneses está junto de Antónia e acompanha-a para onde ela vai. Ao passarem por D. Diogo de Mendonça, este cumprimenta levemente com a cabeça em sinal de apreço.

Antónia está incomodada, evidenciando leves sinais de nervosismo.

Para onde quer que vás, Beatriz de Meneses acompanha-te, assumindo uma proximidade mais íntima do que uma simples amizade.

Estás assustado, António Rodrigues, porque esta história pode acabar mal. Os sentimentos profundos das pessoas são imprevisíveis e, no extremo, podem ser explosivos.

Agora, estás tão aterrorizado que queres sair imediatamente dessa casa. Inventas uma desculpa, dizes que tens de te ausentar. Mas Beatriz de Meneses apercebe-se que, apenas, queres afastar-te dela.

Ainda não sabes por quanto tempo mais serás António, mas pressentes mau augúrio. E tens razão.

Repentinamente, Antónia despede-se e sai da casa de D. Diogo. Beatriz fica desapontada.

Passados alguns dias, a jovem fidalga está acamada.

Beatriz de Meneses está doente. Quase não come e chora amiúde. Lamenta-se de que tu, António Rodrigues, te esquivas dela, sem que mal algum tu lhe tenhas feito.

A situação parece ser grave, ao ponto de o pai, D. Diogo de Mendonça, estar disposto a envolver-se no caso.

O D. Diogo de Mendonça quer resolver o assunto da filha, de uma vez por todas. É recebido pelo governador de Mazagão. O assunto é o estado doentio em que se encontra a filha Beatriz, que morre de amores por ti, António Rodrigues.

O influente fidalgo pede ao governador que interceda, junto de ti, para que regresses ao convívio com a filha, a fim de se preparar o casamento.

Nestas paragens de Mazagão, um desejo de D. Diogo de Mendonça é uma ordem. Sendo assim, ou encontras uma solução airosa para o problema ou a tua vida pode tornar-se num pesadelo.

No próprio dia, o governador mandou-te chamar, António Rodrigues. Está a dar-te uma reprimenda pelo teu comportamento, indigno de um cavaleiro, de não acolher as boas graças da filha do fidalgo mais rico de Mazagão.

Estás cabisbaixo, António Rodrigues, completamente desorientado e titubeante, que nem pareces o distinto cavaleiro que todos conhecem.

O governador constata que algo de errado se passa contigo. E tu, cada vez mais frágil, com os olhos quase a rebentar lágrimas, dizes que te sentes indisposto. Pedes, por Deus, ao governador que te conceda um dia mais para lhe responderes com a dignidade que merece.

Igreja. A Antónia confessa-se junto do padre. Este fica surpreendido com o que ouve da boca dela. O sacerdote benze-se e continua a escutar a Antónia.

Confessionário (Pintura “The Penitent”, de Juan García Martínez-1884)

Já não podes esconder mais o segredo que te acompanhou nestes anos. Acabas de confessar ao padre que o teu verdadeiro nome é Antónia e que és nascida mulher.

Pedes perdão a Deus e a todos os que enganaste, mas fazes lembrar que nunca prejudicaste ninguém, bem pelo contrário, lutaste pela segurança de Mazagão e pela cristandade darias a vida. Contas toda a tua vida, desde a menina pobre de Aveiro até à chegada a Mazagão, como grumete de caravela.

O padre faz o sinal da cruz junto à cara de Antónia. Rezam os dois.

Juras que jamais voltarás a vestir-te de homem e que regressarás à condição feminina que, dizes tu, muito te orgulha.

Suplicas ao padre para que, em nome de todos os santos, vá falar com o governador e lhe conte toda a verdade. E tu, Antónia Rodrigues, ficarás resignada ao que o destino te reservar.

Mais, pedes ao sacerdote que lembre ao governador as tuas abençoadas missões contra os mouros, incumbências sempre bem sucedidas, em nome de toda a comunidade de Mazagão. Que assim seja e que assim se faça!

Sem perder tempo, o padre fala com o governador. Conta-lhe a verdadeira história de Antónia Rodrigues. O governante fica abismado.

Como é fácil de imaginar, o governador está perplexo perante a história que o padre lhe conta. Mas o soberano também surpreende o sacerdote, ao dizer-lhe que os feitos e a lealdade que a cavaleira Antónia Rodrigues mostrou são superiores à ocultação da sua verdadeira identidade.

“A partir de agora, Antónia Rodrigues deverá ser respeitada como dama de Mazagão” – disse o governador.

Depois da estupefação das gentes da cidade, Antónia Rodrigues é apoiada nas ruas de Mazagão.

Sem disfarces nem receio de que te descubram, és tu própria, ao fim de vários anos. Daqui em diante, ninguém trocará o teu nome: és Antónia Rodrigues, de batismo, e assim serás até à morte. És aclamada nas ruas de Mazagão. Chamam-te a Cavaleira.

(ouvir)

O povo dá vivas a Antónia Rodrigues, a Cavaleira de Aveiro.

Lisboa – 1615

Rua Nova dos Mercadores, Lisboa
(Fonte: Society of Antiquaries of London)

Antónia Rodrigues e o filho de 12 anos percorrem uma rua de Lisboa.

Tens 35 anos, Antónia Rodrigues. Acabas de regressar a Portugal. Casaste com um oficial da briosa cavalaria portuguesa e tens um filho.

Em breve, vais reclamar à corte a tença a que tens direito, uma pensão fornecida pelos bons serviços prestados à nação.

O teu nome e a tua história figuram em vários livros…

… “Antónia Rodrigues, também conhecida por Antónia de Aveiro, achava-se esta donzela em Lisboa em casa de uma irmã casada, que a tratava mal, e tendo aos doze anos de idade um espírito muito varonil, se vestiu de grumete e embarcou para Mazagão. Ali assentou praça de soldado com o nome de António Rodrigues, e se fez em pouco tempo tão destra em todas as armas que a passou o capitão ao soldo e milícia de cavalaria, na qual achando-se com valor conhecido em muitas pelejas era amada e respeitada em toda aquela praça. Passados cinco anos que sempre em cautela se soube recatar, ela mesma foi dizer ao Provisor que era mulher. E casando com um cavalheiro dos principais da vila, veio à corte requerer seus serviços, que El Rey premiou com tença, como aos melhores soldados.”

In “Corografia portugueza, e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal” (1706), Tomo Segundo, pág. 124, de Duarte Nunes de Leão.

01/05/2022

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Luís Bizarro Borges

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