A comunicação como espaço de poder

 A comunicação como espaço de poder

É falsa a ideia de que vivemos tempos nos quais a comunicação se tornou estratégica e necessária. Sempre foi. Ocorre que atualmente, com as novas tecnologias, as informações alcançam as pessoas com maior velocidade e intensidade, daí a impressão de que só então a comunicação assume um status de prioridade. Talvez, só agora, e aí sim, seja possível perceber a importância desse setor. Que a gente aprenda. Uma mirada na história e já podemos ver o quanto quem apostou na comunicação conseguiu ser eficaz na fixação de suas ideias. Isso vale tanto para a propaganda de produtos quanto de ideias. 

Antes de qualquer análise sobre como as coisas estão, é preciso uma crítica ao governo petista que vingou a partir das demandas dos trabalhadores. Nem Lula, nem Dilma compreenderam a importância da comunicação de massa e, justamente por isso, perderam a batalha informacional quando mais necessitavam vencer. Isso é algo imperdoável, até porque sempre houve gente no campo da esquerda a chamar a atenção para isso. A estratégia petista foi a de fortalecer alguns jornalistas de nome nacional – Luiz Nassif, Paulo Henrique Amorim  – e investir em uma e outra agência também nacional de difusão de informação, como a Mídia Ninja e os Jornalistas Livres. Equívoco. A comunicação tem de ser regionalizada, pois um país com dimensões continentais como o Brasil não pode ficar refém de análises feitas no eixo Rio/São Paulo/Brasília. Cada estado tem uma dinâmica, uma maneira de apresentar o discurso, um modo de ser.  

Lula – inexplicavelmente – não aceitou a ideia generosa e patriagrandista de Hugo Chávez de tornar aberta a Telesur no Brasil. Barrou o sinal e impediu que os brasileiros pudessem tomar contato com a realidade latino-americana. Criou a TV Brasil, mas igualmente não garantiu que ela fosse aberta e que se espalhasse por todo o território nacional. Não criou TVs comunitárias, não investiu nas Rádios Comunitárias, não propiciou que os movimentos sociais pudessem produzir conteúdo. E aqui é importante tomar como exemplo o governo de Hugo Chávez que criou uma lei – a Lei Resorte – na qual criava as condições para que as comunidades organizadas pudessem produzir conteúdo e criou duas emissoras de televisão públicas, além de outras estatais, de alcance nacional, para a divulgação desses conteúdos. Lula realizou a Conferência Nacional de Comunicação, por tanto tempo esperada pelos jornalistas e gente da comunicação, mas, ao final, colocou tudo por terra ao incluir os empresários com poder de intervenção. Ou seja: manteve a comunicação nas mãos privadas e não teve coragem de romper com a hegemonia dos que sempre comandaram esse setor. A estratégia de investir em pessoas e grupos fincados em SP e RJ não foi capaz de dar combate quando se necessitou de uma comunicação capaz de constituir capilaridade. O governo foi massacrado pela grande mídia que fortaleceu.  

Por outro lado, os grupos vinculados ao empresariado e ao gangsterismo, que sempre souberam da importância da comunicação, trataram de assumir o comando do discurso quando perceberam as potencialidades das novas tecnologias. Daí o investimento massivo em gente e empresas capazes de produzir conteúdo e distribui-lo em velocidade. O advento do WhatsApp – com a formação de redes familiares e de confiança – permitiu que esse discurso pudesse circular sem a mediação dos meios comerciais, ainda que estes também seguissem fazendo seu trabalho de manutenção do status quo. Hoje há um gabinete no governo que comanda a distribuição massiva de informações – muitas delas mentirosas – e há dados que mostram estarem os militares no comando dos algoritmos. Isso é muito importante saber visto que no governo atual, as forças armadas mantêm mais de 11 mil pessoas nos postos de mando. Sendo assim, elas têm as armas, os postos chave e o controle da informação.  

Outro elemento importante que não se pode subestimar é o controle que apenas três empresas – todas estadunidenses e expressões acabadas do capital – têm sobre as plataformas de comunicação utilizadas. Elas controlam o que é publicado, elas armazenam todo o conhecimento que criamos, elas vigiam tudo o que é produzido – mesmo individualmente – e elas decidem se ficamos conectados ou não. Ou seja, debater comunicação é debater poder e soberania, se isso não for entendido, todas as propostas de combate serão inúteis. Afinal, a um toque de botão, podemos ficar totalmente fora das redes sem ter a quem recorrer. Vale lembrar que nem ao Papa, visto que ele mesmo é visto como um “inimigo comunista”.

Qual o diagnóstico hoje 

Pesquisas realizadas pela Kantar Ibope Mídia dão conta de que aconteceram grandes mudanças no campo da comunicação. Obviamente que tem havido uma intensa migração para as novas tecnologias, mudando os meios por onde chegam as informações. A televisão de sinal aberto, por exemplo, perdeu quase 50% da audiência, principalmente no público jovem. Empresas como a Rede TV e o SBT tiveram perdas de 57 e 52%, respectivamente. A Globo perdeu um em cada três espectadores, mas tem investido em outras mídias e ainda se mantém poderosa. Por outro lado, a Rede Record é a única emissora que cresceu em audiência e isso se deve, obviamente, ao fato de que agora tem ligações diretas com o poder tanto político quanto religioso, visto que o neopentecostalismo cresce sem parar.  

Stellan Johansson (Unsplash)

Ainda que a TV aberta tenha perdido audiência, o veículo TV segue sendo a estrela da casa e agora, no período da pandemia as pesquisas dão conta de que mais aparelhos estiveram ligados, embora tenha crescido bastante o serviço de streaming. Ou seja, a pessoa paga um determinado grupo empresarial para ver apenas os seus programas, tipo Netflix, Disney, Globosat, etc… Isso forma um espectador com opções bastante reduzidas, vinculadas ao seu gosto pessoal, um gosto que é moldado pelo que vê, formando um círculo do qual não consegue sair.  Conforme pesquisa do Ibope, em 2020, 15 aparelhos de TV em 100 estavam ligados nos streamings e a Globo detém 33% desse mercado. 

No campo da TV paga, com vários canais – mas quase sempre das mesmas empresas que dominam a TV aberta – o número de usuários vem se reduzindo, apenas 20 milhões de brasileiros têm acesso, com mais quatro milhões chegando ao serviço em esquemas pirateados. 

Esses dados mostram que a TV aberta ainda segue tendo muito poder, até porque ela chega a até 97% do território, com a Globo tendo o melhor sinal. Nesse período da pandemia o tempo médio em frente à TV aumentou bastante e o conteúdo jornalístico das redes passou a ser mais consumido, passando de 21 a 30%, provavelmente por conta das informações referentes a caminhada da Covid-19. Ainda assim, o conteúdo mais visto na TV aberta são os programas de realidade confinada, os chamados realitys shows, como Big Brother, a Fazenda e outros, que não passam informação alguma, sendo unicamente espaços de algaravias pessoais, bastante alienadoras. Mas, por outro lado, são programas que fortalecem de maneira inteligente e subliminar a lógica do capital na qual se eliminam pessoas que não se enquadram aos gostos dos espectadores. Competição, individualismo, hedonismo, egoísmo, preconceito são alguns dos valores que vão se tornando cada dia mais musculosos. Logo, não são programas de entretenimento, mas de mais-valia ideológica, conforme expressa Ludovico Silva.  

As pesquisas também mostram também que os conteúdos das TV abertas acabam escapando do meio e invadindo também as redes sociais. Eles são responsáveis pela geração de milhões de twitters, postagens no facebook, memes e publicações do Instagram, fazendo com que as mesmas informações circulem por todos meios. É um círculo sem fim. 

Os celulares como novo meio hegemônico

Se a TV chega a 97% dos lares, o celular, meio individual de comunicação, praticamente está colado em cada brasileiro e está presente em 94% dos lares. Hoje existem 234 milhões de aparelhos, uma média de um por habitante. Segundo o IBGE 79% dos brasileiros dispõe de um celular. A faixa etária que mais está grudada nesse aparelho é a de 30 a 34 anos, com uma taxa de 90%.  

Os números são reveladores da vitória do meio individual de comunicação, mas os problemas de acesso ainda estão longe de serem resolvidos. Apenas metade do país dispõe de um sinal realmente bom e a velocidade do serviço é bastante precária. No Brasil agravado pelo fato de as empresas estarem facultadas a entregar apenas 80% da velocidade contratada. O trânsito de dados ainda é muito baixo, sendo o estado de São Paulo o que tem o melhor índice. Cada pessoa passa pelo menos três horas no celular durante o dia.  

O conteúdo mais visualizado nos sítios de busca está relacionado ao “como fazer” ou lista de coisas, do tipo, cinco dicas sobre isso ou aquilo. Acessar notícias ocupa 25% do tempo, já a visualização de memes e outros conteúdos engraçados ocupa mais de 30% do tempo. As redes mais acessadas são o Youtube (95%), o Facebook (90%) e o Whatzapp (89%). Existem 140 milhões de usuários ativos nas redes e 61% das pessoas as acessam pelo celular.  

Quem é da área deve se lembrar do acordo fechado pela presidente Dilma com o dono do Facebook para garantir acesso massivo do conteúdo da rede aos brasileiros, criando assim uma legião de alienados ao discurso exclusivo gerado pelo Facebook, visto que os pacotes de dados da maioria não permitem a navegação por outros sítios. Uma forma perversa de manter a massa cativa, refém do aplicativo. O mesmo se deu com o uso do WhatsApp que passou a ser “gratuito”, oferecido pelas empresas de telecomunicação. Com isso, cria-se o cenário perfeito para a manipulação da informação visto que os que têm menos condição de garantir pacotes de navegação são os que se informam exclusivamente pelos dois sistemas: o que interessa ao Zuckerberg (o capital) e o que interessa ao sistema dominante em cada espaço geográfico (gerentes do capital). 

Para abastecer essas redes nascem as empresas produtoras de informações e as distribuidoras de conteúdo que podem atingir milhões em um único segundo, o que torna o combate bem mais difícil. Como já dissemos, hoje, no Brasil, são os militares que comandam esse processo. 

Para dar alguns exemplos, na secretaria Especial de Comunicação havia até ontem um almirante de esquadra  – Flávio Augusto Viana Rocha, ficou por meses acumulando cargos. Na EBC, são sete militares em postos chave. O Ministério da Defesa criou um Centro de Comunicação Social, com grande número de militares. A Abin é comandada por um ex-policial indicado do general Santos Cruz. No Ministério de Ciência e Tecnologia, o tenente Marcos Pontes e por aí vai. Eles comandam setores estratégicos e têm acesso a toda a tecnologia de controle de informação. 

A história e o que fazer 

Uma das coisas que precisam ficar claras é que o problema da alienação não é causado pela tecnologia. Ou seja: não são as redes sociais que imbecilizam, alienam e desinformam. Como muito bem já discutiu o grande filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, a questão que precisa ser pensada é a sociedade que gera essa alienação, o modo de produção que a engendra. E, nela, a comunicação produzida.  

A história dos meios de comunicação de massa mostra que não é meio em si que define a comunicação, mas sim o poder que está por trás e que busca vencer a batalha do discurso. Os jornais diários quando surgiram na França queriam mais era  vender mercadorias do que dar notícias de real interesse. Mas, também havia diários capazes de refletir criticamente a realidade como a Nova Gazeta Renana, de Karl Max, ou o Diário do Orinoco, criado por Simón Bolívar. O rádio, quando massificou a informação, chegando também a quem não sabia ler, serviu para alienar, como foi o caso da Alemanha nazista, mas também se prestou a desalienar como foi o caso da Rádio Rebelde em Cuba, que fermentou a revolução. O mesmo se pode falar da televisão que surgiu para revolucionar as comunicações, ancorada no sistema dominante, mas ainda assim, sempre  permitiu, involuntariamente, que a verdade escapasse quando em vez. Os meios não produzem as coisas, são as pessoas, em sociedades historicamente determinadas que as fazem. 

Steve Halama (Unsplash)

Portanto, os tempos modernos, das redes sociais, igualmente estão prenhes dos mesmos devires. Podem enganar, mentir, alienar, ou não. Tudo vai depender do sistema que domina o processo. Por isso qualquer debate sobre a comunicação tem de ter uma proposta de poder e de um novo modo de produção da vida.

É fato que hoje a velocidade da informação é um diferencial que não pode ser negligenciado e a possibilidade da massificação de um engano, de uma mentira – as chamadas fake news – é bem maior do que na era do rádio ou da televisão. Isso nos remete então à discussão da sociedade na qual estamos mergulhados e à sua capacidade de garantir que tudo permaneça como está. O que é gerado nas redes é fruto da ação de grupos de poder. Sendo assim, voltamos ao ponto central: enfrentar a batalha comunicacional não pode se apequenar na mera crítica dos meios. Há que avançar para a destruição do sistema de dominação que nos aprisiona. É, portanto, uma batalha sobre poder.  

Nesse sentido a batalha pela comunicação precisa se dar dentro dos meios existentes, ainda que estejamos em desvantagem sempre, mas principalmente fora, no campo da política, no cotidiano. É na vida real, na materialidade da existência que se torna possível a mudança. Daí a necessidade da educação política da população para que cada pessoa seja capaz de compreender o que se mostra e o que se esconde no discurso dominante. Para além disso, nos grupos em disputa pelo poder, esse tema tem de estar no topo e fazer parte da agenda estratégica.  

Isso significa que precisa ser necessária a coragem para tocar na estrutura do setor, coisa que nos 14 anos de governo petista não aconteceu. O medo de enfrentar as grandes redes – com a renovação automática das outorgas públicas, a falta de uma lei mais dura no campo da comunicação e a estratégia equivocada de ação – garantiu a continuidade do mesmo discurso servil ao poder dominante mundial, ao capital. Foram 14 anos que poderiam ter revirado muita coisa nesse setor. Mas, não aconteceu. O resultado apareceu em 2016, quando durante o processo de julgamento público da presidente Dilma, os meios tradicionais, unificados,  fizeram sua parte na defesa da classe dominante, enquanto a militância petista se viu desprovida de meios para enfrentar o ataque.  

Hoje, a situação ainda é mais dura na medida em que a comunicação está na mão dos militares e o simples controle dos algoritmos acaba tendo um poder extraordinário. A capacidade de resposta do grupo bolsonarista – por exemplo – é avassaladora na sua rapidez e eficácia, ainda que seja um grupo relativamente pequeno. Mas eles contam com as estruturas de poder, tanto na produção do conteúdo como na sua distribuição. Não bastasse isso, as chamadas redes sociais são controladas ideologicamente pelas empresas que impedem que o combate se faça desde dentro. Divergir ou criticar é aceito até por ali. Se passou do limite deles, o conteúdo é censurado. “Você violou as regras da comunidade”, quem já não teve uma postagem sua assim recusada? A correlação de forças dentro do sistema é contra nós significativamente. Temos de atuar formando gente capaz de compreender essa nova forma comunicacional na sua materialidade e funcionamento. E também atuar fora das redes virtuais, no corpo-a-corpo com a vida, com as pessoas. Fazer isso dá trabalho, é penoso, mas ou é isso ou já perdemos a batalha. Além disso, o projeto de poder para a mudança precisa contemplar a questão da ciência e da tecnologia para que seja possível criar soberania comunicacional também.

Resumindo: não tem receita de bolo e não é possível seguir acreditando que postar no face ou no uatizapi resolve o problema. Há que ter o controle dos meios. E isso se resolve na política. Como já dizia o velho Marx: “a parada é sinistra, mas vamos transformá-la”. 

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Elaine Tavares

Jornalista e educadora popular. Editora da «Revista Pobres e Nojentas», com Miriam Santini de Abreu. Integra o coletivo editorial da «Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos». Coordenadora de Comunicação no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (no Brasil).

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