A língua portuguesa nas mãos dos políticos

 A língua portuguesa nas mãos dos políticos

(observalinguaportuguesa.org)

É confrangedor verificar as piruetas que muitos políticos dão em tão curto tempo. Embora a proposta de lei socialista sugerida pelo deputado Paulo Pisco de revogação da propina no Ensino de Português no Estrangeiro (EPE) no Orçamento do Estado para 2025 tenha sido aprovada, por maioria, no Parlamento, são estonteantes os votos contra dos sociais-democratas e dos centristas, os quais, já no Governo desde Abril, tinham anunciado a mesma medida, em Outubro.

Ensino e escolas portuguesas no estrangeiro. (dgae.medu.pt)

Como declarou o parlamentar Paulo Pisco, a decisão de acabar com a taxa de inscrição no EPE «cria melhores condições de futuro para os jovens portugueses e lusodescendentes e dá um importante contributo para reforçar a sua ligação afe[c]tiva ao país dos seus pais e avós».

Ao reconhecer a importância e a dimensão da diáspora portuguesa, o deputado Paulo Pisco argumenta que «eliminar a propina é uma forma de promover e [de] proje[c]tar a língua e a cultura portuguesas no mundo e o seu valor económico, cultural, político e diplomático».

 (mundoeducacao.uol.com.br)

Recorde-se que o Acordo Ortográfico (AO) da Língua Portuguesa foi elaborado em 1990, consistindo num instrumento que, na perspectiva dos decisores na época, tinha «por objectivo criar uma ortografia unificada» para o Português, que viesse a ser usada por todos os países de língua oficial portuguesa. Com cerca de 300 milhões de lusófonos, o nosso idioma é o quinto mais falado no Mundo e, como reconhece a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), tem um relevante papel na preservação e na disseminação da civilização e da cultura humanas.

José Saramago (sescpr.com.br)

O AO começou por ser aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91, de 23 de Agosto. Ou seja, foi uma decisão parlamentar tomada na fase final do segundo governo de Cavaco Silva, a que se seguiu outra, já no terceiro governo cavaquista, da iniciativa do então subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, de vetar a obra «Evangelho Segundo Jesus Cristo», de José Saramago, ao Prémio Literário Europeu, por considerar que atentava contra a moral cristã. E não atentou, claramente, contra a promoção da nossa literatura?

Os anos foram, aparentemente, exaurindo os oponentes de tal resolução, que, neste caso, não se sentiram representados na Assembleia da República. Mesmo assim, em 2019, mais de 20 mil signatários avançaram com um projecto de lei de iniciativa de cidadãos para a suspensão do AO, tendo sido pedido um parecer sobre a sua constitucionalidade à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Porém, a vontade popular ficou por cumprir, com o argumento constitucional de que, nas convenções internacionais, como é o AO, a respectiva «vinculação ou desvinculação» faz parte «da reserva de iniciativa do Governo».

Uma das críticas apontadas aos que pensam que a nova ortografia representa uma perda de identidade linguística é a de que resistem à mudança, como se estes não soubessem que os idiomas carregam consigo as marcas da evolução e a história das comunidades falantes. De facto, muitos de nós vamos notando a ambiguidade das novas regras, acentuando-se as dúvidas quanto à grafia correcta de determinadas palavras.

(animal-ethics.org)

Ainda estamos à espera de uma demonstração cabal de que a imposição das referidas regras reflecte a evolução da língua e a necessidade de adaptá-las aos novos tempos. Alguém tem a coragem política de ouvir os linguistas, os escritores e os jornalistas, entre outros, para nos esclarecer da real situação do acordo nos países de língua portuguesa? Entretanto, vai-se dando voz às resistências dos que exaltam a bravura dos toureiros que, num espectáculo bárbaro de três horas, enfrentam os touros agredindo-os lentamente com bandarilhas, provocando um intenso sangramento. Que continue, pois, a lide com ferros compridos e IVA mais curto!

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Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 1 de Dezembro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

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02/12/2024

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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