A obra de um “herói improvável”

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

Rita Mota, Jorge Marinho, Amanda Baeza e Miguel Rocha.
Composição usada como cartaz da exposição “Camões: a Legacy
Reimagined”, organizada no King’s College London, em Outubro de
2024, com curadoria de Alexandra Dias Lourenço.
Mudam-se os tempos, mas nem sempre se mudam as vontades, apesar de Luís de Camões escrever que todo o mundo é composto de mudança. Pois, não mudou a nossa vontade de descobrir quem foi esse fidalgo empobrecido, boémio turbulento e apaixonadiço que cantou e se encantou, como poucos poetas, com a menina dos olhos verdes e também se arrebatou por Dinamene, por Bárbara, por Catarina, por Violante e por Francisca, a par de outras mulheres.
Ambivalente entre a espada e a pena, o poeta lembrava: “Continuamente vemos novidades, / Diferentes em tudo da esperança […]” Cinco séculos depois da data provável do nascimento de Camões, os homens continuam a guerrear-se e “do mal ficam [ainda] as mágoas na lembrança”, quer sejam vividas em Gaza, na Ucrânia, no Iémen, na Síria, no Sudão ou em Mianmar.

Uma recente visita guiada à exposição “Camões 500”, inaugurada em 9 de Janeiro e que se prolonga até 25 de Julho, com curadoria de Paulo da Silva Pereira e de Filipa Araújo, permitiu-me apreciar o fascinante legado cultural – na Sala de São Pedro da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC) – integrado em quatro núcleos temáticos: “Bio-iconografia camoniana: revisitações”, “Letras impressas”, “Camões e os jovens leitores: o passado de risonhos futuros” e “Camões, uno e múltiplo: recriações digitais”.

Curiosamente, a vídeo-animação (ou o vídeopoema “Tão pequeno”) de André Vallias retoma o texto do cartão-postal de Boas Festas de Ano Novo (de 1941), no qual Stefan Zweig, então exilado no Brasil, mandou imprimir a sua tradução, para Alemão, da estrofe 106 do Canto I de “Os Lusíadas”. Após mais de seis décadas, Caetano Veloso, desconhecedor desse gesto do escritor judeu-austríaco, escolheu os quatro versos finais da mesma estância para compor uma das canções da trilha sonora do espectáculo “Onqotô”: “Onde pode acolher-se um fraco humano, / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?”
Filipa Araújo ajudou-nos no olhar crítico da poesia deste “herói improvável, mas, ao mesmo tempo, um grande exemplo de superação”. E induziu-nos a observar os exemplares da lírica camoniana, cuja primeira obra foi editada pela primeira vez em 1595, quinze anos depois da morte do poeta.
O parecer do censor do Santo Ofício (o dominicano Frei Bartolomeu Ferreira), ao afirmar que o autor “mostra muito engenho e muita erudição nas ciências humanas”, terá contribuído para que “Os Lusíadas”, enquanto primeira epopeia impressa em língua portuguesa, tivesse alcançado célere prestígio. Refira-se que o único exemplar da edição original de 1572 existente na BGUC só ali deu entrada em 1944. Este pequeno volume, adquirido pelo Estado num leilão, fazia parte da colecção do industrial lisboeta Vítor de Ávila Peres.

for today”, editado por Helder Macedo e Thomas Earle)
Considerando um estudo da catedrática Rita Marnoto, existirão 39 cópias dessa primeira edição, cuja tiragem se calcula entre 100 e 120 exemplares. Há quem admita que foram entre 200 a 250 os exemplares dados à estampa no ano de 1572, em Lisboa. “Só saberemos da existência de mais alguma cópia se os respectivos proprietários divulgarem essa informação, porque as obras em bibliotecas particulares nem sempre estão identificadas”, comenta a académica Filipa Araújo, dando-nos conta das marcas d’água do exemplar ali mostrado sob muitas reservas, dada a sua excepcionalidade (pertence a um grupo restrito de obras guardadas num cofre), bem como das diferenças na qualidade do papel e das “muitas gralhas e acertos” no processo tipográfico.
Chegou a discutir-se se as verdadeiras primeiras edições de “Os Lusíadas” eram as que ostentavam, na folha de rosto (ou frontispício), um pelicano virado para esquerda ou um pelicano virado para a direita. “Neste caso, o pelicano virado para a esquerda do leitor é um sinal de que se trata, efectivamente, da primeira edição”, garante Filipa Araújo, enfatizando a finalização de “Os Lusíadas”: “De sorte que Alexandro em vós se veja, / Sem à dita de Aquiles ter enveja.”
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 13 de Julho) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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14/07/2025