“A substância”… desta coluna
Passado o 30.º Festival Caminhos do Cinema Português, creio que a associação ao evento me trouxe um momento de hiperfoco, pois estava fortemente engajado e imerso nas suas atividades. Senti-me muito bem por ter sido parte desta festa do cinema e fiquei, realmente, sensibilizado por toda a abertura que a equipe demonstrou. Como diríamos no Brasil, “fiquei mal-acostumado”. Confesso que precisei de alguns dias para absorver o distanciamento das sessões e encontros com o grupo de jurados e com a organização. No entanto, penso que a experiência é digna de indicação aos amantes do cinema. Aconselho aos cinéfilos conimbricenses ou de qualquer outra região que tenham um crescente envolvimento da sua comunidade com essa celebração do cinema português, apoiando a sua causa. Não haverá arrependimento, seguramente.
De qualquer forma, com o término desta edição do festival, fiquei com uma sensação de que algo estava a faltar, no que tange ao sinalAberto. Creio que cheguei aqui em circunstâncias bastante atribuladas, focado em cobrir o evento, e acabei por não tirar um momento para criar espaços de dialogismo com o leitor. Não é porque sou o “espectador fantasma” que haja uma necessidade de ocultação ou de segredo. Até os fantasmas têm nome. Afinal, não tenho a pretensão de agir como Lady Whistledown, na surdina, avaliando a corte real, como no aclamado seriado “Bridgerton”.
A atuação como espectador crítico tem as suas “nuances” próprias, mas podemos falar disso mais adiante. Sinto-me em dívida e creio que seria interessante apresentar-me informalmente, com a finalidade de criarmos uma maior sinergia. Para além do texto de apresentação, disposto no portal, acho interessante partilhar algumas das minhas experiências.
O meu nome é Henrique Denis Lucas, mas, desde criança, recebi a alcunha de Rico, escolhida pelos meus irmãos – creio que por meus cabelos claros – e que é repetida até hoje pelos meus amigos e familiares. Sou gaúcho, natural de Santo Ângelo, no Brasil, e como bom brasileiro, torço para um “time” de futebol – a minha paixão, o Internacional de Porto Alegre. Inclusive, já tive grandes intenções de ser futebolista. Mas, me saio melhor como um cinéfilo inveterado, um amante da música, da literatura e das artes visuais. Já fui ator de curtas-metragens e de peças de teatro – morri como o entregador de leite do poema “Morte do leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade –, fui palhaço de loja, desenhista de retratos e de bandas desenhadas, cozinheiro de hambúrgueres, tradutor e professor de Inglês e de Espanhol, tive grupos musicais, escrevi poemas e contos, e tive minhas empreitadas em meios de comunicação e de produção cultural. Tenho a honra de contar-lhes que até “meme” já virei, nos confins da Internet. Decidi parar toda essa busca e deriva quando encontrei a pesquisa académica – o que não significa que a minha alma tenha se aquietado. Hoje, por questões profissionais, encontro-me em Coimbra, redescobrindo o gosto pela escrita criativa e pela imersão investigativa.
Acho relevante também começarmos a traçar algumas diretrizes de interesses desta coluna, para que o leitor saiba previamente o que encontrará aqui. Pretendo focar-me bastante no cinema e num tipo de crítica mais ensaística que contenha as minhas percepções e experiências como espectador, além da perspectiva técnica e contextual das obras fílmicas. Não se preocupe, caro(a) leitor(a), não vou dar “spoilers”… ao menos tentarei não o fazer.
Dizem que os críticos de cinema funcionam quase como sommeliers de filmes, inspirando os seus leitores a assistirem a determinadas referências. Não creio que cumprirei esse papel de maneira tão empenhada, pois apenas me concentrarei em trazer as minhas impressões, e o leitor, consciente do seu posicionamento crítico, analisará se elas lhe servirão. Numa primeira instância, tenho em vista abordar o conteúdo audiovisual acessível nos cinemas e canais de streaming ao meu entorno, discorrendo não apenas sobre os lançamentos, mas também sobre filmes de importância histórica, filmes de culto, curtas-metragens e seriados. Eventualmente, tentarei cobrir outros festivais de cinema, da mesma forma que tratarei de abarcar outros eventos artísticos, como peças de teatro, shows e exposições, que possam, de alguma maneira, ser interessantes para os leitores desta rubrica. É importante ter essa amplitude, a meu ver, para também considerarmos os contextos sociais e históricos que cada obra cultural carrega consigo. Observar o cinema é uma ótima forma de observar a nossa cultura, a nossa sociedade e o momento político e histórico.
Como prova disso, trago o filme “A substância”, de Coralie Fargeat, que está a criar um grande agendamento mediático por conta da forma em que trabalha a temática dos padrões de beleza atuais. Não é à toa que o filme tem classificação etária para maiores de 16 anos e é considerado como parte do género de ficção e terror. Em seu enredo, Elizabeth Sparkle (Demi Moore) é uma apresentadora famosa na televisão estadunidense, por conta do seu programa de exercícios físicos. Com o seu envelhecimento, os produtores da rede televisiva a demitem, declarando abertamente a sua demanda por modelos jovens e de apelo sexual. Ela acaba por embarcar numa jornada de autocomiseração até esbarrar numa pessoa que lhe indica uma substância que poderia mudar a sua vida. O resultado dessa trama é um percurso de alternância entre o belo e o grotesco, com consequências realmente surpreendentes, extremas e inquietantes, tanto para Elizabeth quanto para o espectador.
Este é um filme em que o plano detalhe é muito importante para a plena experiência da narrativa e nos faz compreender as percepções da protagonista e criar empatia por ela, seja por nos identificarmos com as suas vivências, seja porque a própria construção simbólica funciona perfeitamente.
A realizadora utiliza uma profusão de recursos visuais do cinema de horror corporal como dispositivo que ajuda a moldar as alegorias que mantêm a estrutura narrativa do filme. As simbologias vão criando – e até antecipando – a história. Dessa forma, a sua construção trata de, intencionalmente, causar as emoções opostas de repulsa, em algumas cenas, e deleite, para outras. Uma alternância que parece ter relação direta com o universo da estética e do embelezamento. O filme parece estar o tempo todo nos dizendo “se você pretende encontrar a árvore da juventude e ser eternamente jovem e linda, sempre haverá um preço doloroso a se pagar”. E, com isso, a realizadora questiona não apenas o caráter, a índole e os limites de Elizabeth, mas os do próprio espectador. Tal qual no universo da estética, o filme extrapola os limites do absurdo. Quando achamos que está por acabar, ele continua investigando até onde a sociedade pode ir na busca pela perfeição.
Há aqui, também, um forte apelo feminista que é por demais relevante, atualmente. A representação do masculino é desagradável e infantil. Há uma produção imagética significante no entorno de Harvey (Dennis Quaid), uma personagem que talvez possa gerar mais aversão na audiência do que propriamente as situações bizarras vividas por Elizabeth. A produção traz nítidas referências ao livro “A Metamorfose”, de Franz Kafka, ao filme “A mosca”, de David Cronenberg, e ao “Iluminado”, de Stanley Kubrick. “A substância” está bastante cotado para o Oscar 2025 e é hoje, 9 de dezembro, a sua última exibição na Casa de Cinema de Coimbra.
Filmes como este põe-nos a pensar sobre o nosso entorno e conseguem ter um efeito quase forçoso de autorreflexão, pois o impacto das imagens e da narrativa emocionalmente violenta não nos dá outra opção. Mas, esta é uma das funções do cinema e agradeço por poder ajudar-vos a perceber certas “nuances” que possam contribuir para a sua própria análise crítica. No filme, temos Elizabeth tentando sair da escuridão da condição humana do envelhecimento e da mortalidade para uma luz divina da eterna juventude. Aqui, nestas publicações, tento fazer com que a minha versão como espectador fantasma, no escuro da sala de cinema, possa trazer-vos claridade sobre algumas características importantes dos filmes em questão e, consequentemente, sobre outras possíveis perspectivas. Agora, devidamente apresentados, sigamos trocando os nossos olhares fantasmagóricos.
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09/12/2024