A verdade de Sísifo

Sísifo foi obrigado a passar os seus dias a arrastar uma grande e pesada pedra até o cimo de uma montanha, mas, sempre que chegava ao cume, ela caía, tendo de recomeçar a árdua tarefa. (desfavor.com)
Existe um provérbio árabe que diz que “a repetição deixa a sua marca até nas pedras” e observando as notícias durante este último mês, o referido provérbio teve, para mim, mais sentido do que nunca. Junto a este velho provérbio – que recordei, vagamente, ter lido no livro “O Físico”, da autoria do jornalista Noah Gordon”, e, por isso, tive de confirmar na Internet como era exatamente –, afiguraram-se-me pertinentes o mito de Sísifo, de que fala Albert Camus (num ensaio filosófico escrito em 1941), e o conceito de “banalidade do mal” (expressão criada por Hannah Arendt, teórica política alemã, no seu livro “Eichmann em Jerusalém”), pelo menos, da forma como a minha mente foi interpretando os factos que fui vendo e ouvindo.

Contando a história muito brevemente, Sísifo, filho do rei Éolo e Enarete, considerado o mais astuto dos mortais, enganou os deuses uma série de vezes, chegando a aprisionar o deus da morte Tanatos. Assim, foi condenado pelos mesmos deuses a, após a sua morte, empurrar uma pedra gigante por uma montanha acima e, quando chegasse ao cimo, deveria repetir tudo outra vez. Entrando no reino da imaginação, acredito que os primeiros tempos tivessem sido difíceis para Sísifo, mas, conforme o tempo foi passando, talvez ao fim de alguns séculos ou de milénios, aquela tortura exasperante se tenha tornado normal para ele. Aquele movimento eterno era toda a sua existência, chegando a um ponto em que repetiu essa ação tantas vezes que, em vez de uma tortura, era-lhe tão normal como, para nós, respirar. Acredito que, em vez de Sísifo, tenham sido os deuses a aprenderem uma lição, porque Sísifo já enfrentava o seu castigo com um encolher de ombros. A repetição normaliza e banaliza tudo e qualquer coisa.

Na sua noção da “banalização do mal”, Hannah Arendt afirma – eu apresento a ideia simplisticamente, atenção! – que até o mal dos nazis, como Karl Adolf Eichmann, não era um mal propriamente demoníaco e vilanesco, ao ponto de, para os mesmos, não ser sequer considerado mal, pois era algo constante e tão infinitamente repetido. Ou seja, para eles (os nazis), seria “normal”. Com isto, não se quer justificar os horrores que estes monstros cometeram, mas explicar que, do seu ponto de vista, esses horrores eram feitos com a mesma atitude impassível ou imperturbável de um contabilista que consulta o código de contas ou de um calceteiro que martela um paralelo da calçada. Apenas cumpriam ordens, era banal.
Hoje, talvez não de uma forma tão extrema, continuamos a assistir a uma banalização daquilo que, claramente, não é correto; apenas, porque é repetido vezes sem conta. Uma ação frequentemente repetida torna-se um hábito, mesmo se, em dado momento, existe algum limite ético, moral ou legal ligado a essa ação.

Há várias décadas, antes do 25 de Abril de 1974, a Censura (sobretudo, controlando a informação e reprimindo a imprensa) era considerada uma das maiores afrontas à democracia, em Portugal. No entanto, depois de vários anos a assistirmos aos nobres paladinos do Twitter a “cancelarem tudo e mais alguma coisa”, é-nos, presentemente, normal observar pessoas a “cancelarem” e a “corrigirem” obras clássicas, como livros, filmes e músicas, porque não se adequam aos padrões atuais, sejam eles quais forem.

com quais posturas políticas cada indivíduo mais se
identifica. (© Getty Images – bbc.com/portuguese)
Não se tenta contextualizar, porque as palavras machucam demasiado e tudo aquilo que incomoda alguém deve ser eliminado ou adaptado. E não se pense que isto é coisa de wokes, porque, há dias, a BBC cancelou um programa do mítico David Attenborough, porque poderia incomodar o governo inglês e os seus acólitos conservadores. Com a banalização do desbarato de um dos pilares da liberdade, acompanhada, como sempre, de uma pitada da “síndrome do super-herói” (acreditando que é possível solucionar os problemas alheios antes dos próprios), temos uma das hipocrisias mais deliciosas da contemporaneidade.

Essa repetição e subsequente banalização do mal está presente em casos muito mais graves, como – não esqueçamos! – a justificação de um bispo relativamente a um alegado padre pedófilo, que só fazia as atrocidades que fazia porque “tinha depressão”. Portanto, nesse entendimento, “não é compulsivo”. Se analisarmos a entrevista televisiva, é óbvio que o senhor bispo não disse aquelas barbaridades “por mal”, pois a pedofilia existe na Igreja Católica há várias décadas ou, provavelmente, séculos. Por conseguinte, passou a ser, quase inadvertidamente, um “mal tolerável” e banal dentro da organização, não sendo, deste modo, motivo de admiração ver tão poucos membros do clero a manifestarem-se escandalizados com a situação.
A uma pessoa a comer sabão chamá-la-ão de doida. Porém, ver quinhentas pessoas a comer sabão será talvez tolerado. Após uma semana, se o número de indivíduos que comem sabão aumentar, é provável que eu também experimente comer sabão. A indigestão consequente pouco importará, pois, a ação foi repetida vezes sem conta e é tida como “normal”.
Atenda-se a que a normalização de coisas que, antes, não eram consideradas normais não é algo, necessariamente, negativo. Basta observar que isso acontece com os direitos das mulheres – normalizando-se a manifestação disruptora, erradicando os estereótipos de género e os papéis tradicionalmente atribuídos a homens e a mulheres, por exemplo – e com outros direitos humanos. Não obstante, creio que chegámos a um ponto em que, mais do que nunca, devemos desenvolver sentido crítico – fomentando a interpretação de textos sobre estas matérias nas escolas, entre outras ações cívicas –, bem como estabelecer limites claros entre o que é aceitável enquanto sociedade progressista e moderna e aquilo que não é admissível.

Ainda a este propósito, penso que, mesmo respeitando a liberdade individual, não pode ser aceite nem banalizada a crença (na presunção “terraplanista” ou baseada na teoria da conspiração) de que as vacinas são feitas com sangue de bebés; nem que – pasme-se! – seja válido eliminar ou adaptar obras, opiniões ou conceitos que incomodam e que não são “politicamente corretos”.
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13/03/2023