A viagem do “cão-problema”
A meio da tarde da recente sexta-feira, assistimos, com estupefacção e maior repulsa, a uma situação bastante lastimável. Ao acompanharmos uma das nossas filhas que iria viajar até Lisboa, com destino a Sete Rios, esperámos pelo autocarro, já com algum atraso, junto de uma rapariga e de uma octogenária que se fazia acompanhar de um “pinscher”miniatura de pêlo camurça-acastanhado.
A jovem e a idosa trocavam algumas palavras de circunstância, de quem não se conhece. O cão de pequeno porte encontrava-se dentro de um saco de viagem dobrável, com o fecho ligeiramente corrido, de forma a permitir-lhe o devido arejamento e a que colocasse a cabeça no exterior. A tarde continuava quente e o animal, muito atento ao olhar da dona, procurava, ao seu jeito, regular a temperatura corporal, de língua de fora.
O cãozito estava sereno e, considerando o seu tamanho e respectivo comportamento, mostrava ser um companheiro ideal para a velha senhora, na visita a um filho que vive na grande cidade.
Entretanto, chegou o autocarro. Desceram uns passageiros que agarraram em malas e em bagagens. E fizeram fila os que pretendiam partir. De “smartphone” em punho, o condutor da viatura ia lendo os códigos dos bilhetes da Rede Expressos, até que o ouvimos falar alto: “O cão não pode seguir!” A senhora, que tinha vindo de Tondela sem qualquer problema, visivelmente muito corada e a tremer, manifestava: “Mas eu comprei bilhete para transportar o animal!” “Assim, não pode!”, declarava, com modos agressivos, o dito trabalhador desta empresa que tem a missão de assegurar “a ligação entre centenas de destinos, várias vezes ao dia, garantindo um elevado padrão de qualidade e segurança”.
De facto, os animais de companhia de pequeno porte – sobretudo, cães, gatos e alguns roedores – têm permissão para viajar com os seus donos num habitáculo adequado, ou seja, “devidamente acondicionado em contentor apropriado”, conforme estipula a Portaria 968/2009, “devendo ocupar o espaço de chão inerente ao lugar adquirido”. A atitude irredutível e bestificada do condutor, aparentemente com milhares de quilómetros percorridos, a aferir pelo cabelo grisalho, se se incorporava com o previsto cumprimento legal das regras de transporte dos animais de estimação, carecia de empatia ou, se calhar, de alguns valores morais. E o sujeito, verdadeiramente mal-educado, propunha: “A senhora pode viajar, tem é de deixar o seu cão em terra!”
Desesperada, a octogenária – que nos disse ter sido submetida a uma intervenção cardíaca – não conseguia conter as lágrimas perante tal desumanidade: “Eu troquei este saco pela transportadora habitual do meu cão, porque estou muito carregada. E não tenho outro meio para seguir viagem. O meu filho está à espera!”
A referida jovem, também boquiaberta com o que testemunhava, revoltou-se e mostrou, calorosamente, o seu desagrado perante o procedimento do condutor. Mesmo assim, o autocarro seguiu a sua rota, com passagem por Fátima. Nada parecia valer à velha senhora, ficando sozinha na gare rodoviária com o seu cão, que não quis abandonar.
Felizmente, a funcionária da bilheteira, sensibilizada com o que lhe contavam, revalidou a viagem para um próximo veículo e convenceu o novo condutor a condescender com a falta da desejada caixa transportadora para o cãozito talvez cheio de sede, por causa da demora…
Apesar de não conhecer o protagonista deste acontecimento, Alexandre O’Neill escreve um admirável poema, do qual retiro os dois primeiros e os três últimos versos: “Cão passageiro, cão estrito, / cão rasteiro cor de luva amarela” […] “cão de olhos que afligem, / cão-problema… // Sai depressa, ó cão, deste poema!”
.
………………………….
.
Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 25 de Agosto) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
.
26/08/2024