“A Voz Humana”
A voz é um mecanismo físico humano que nos permite exteriorizar, além da fala, os nossos sentimentos e as nossas ideias. É um mecanismo interior e exterior. E que, no exterior, expressa ou revela o interior do ser humano.
“A Voz Humana” é o título de um monólogo teatral escrito em 1930, ano em que foi estreado na Comédie Française, por Berthe Bovy. Nele, uma mulher tem uma última conversa por telefone com o seu amante, que acaba de deixá-la. A peça de Cocteau foi transformada em filme por Roberto Rossellini, como um dos episódios do filme “L’amore” (de 1948), interpretado por Anna Magnani. 18 anos depois, Rossellini voltou a realizá-lo, desta vez para a televisão, com Ingrid Bergman como protagonista.
Pedro Almodóvar incluiu uma passagem da obra nos seus filmes “A Lei do Desejo” (de 1986) e “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (de 1988). Mais tarde, volta a abordar o tema numa curta-metragem, no ano de 2020, considerado pela crítica como um “filme ensaio”.
A par das versões já citadas, consideramos ainda “The Human Voice”(de 1966), com realização de Ted Kotcheff, sendo este telefilme protagonizado por Ingrid Bergman. Refira-se que não está disponível para visionamento em nenhuma plataforma portuguesa nem sequer em DVD. Trata-se, apenas, de um extenso áudio de 42 minutos com a voz da célebre actriz Ingrid Bergman e que dialoga connosco numa apaixonante intimidade.
Em 2011, no Teatro Nacional São João (TNSJ) do Porto, a voz foi a da actriz Emília Silvestre, com encenação de Carlos Pimenta.
Também tenho a versão em ópera deste texto, pelo músico francês Francis Poulenc, com a data de 1958, é apelidada “Tragédia lírica em um acto”.
Em “A Voz Humana”, a protagonista é uma jovem à espera de um telefonema do seu ex-amante, sem ter o menor sinal dele.
Como podemos apreender na página oficial México Legendario, a “ideia de Cocteau partiu de uma experiência pessoal, uma conversa telefónica que ouviu num café, na qual a voz e o silêncio alternavam de forma significativa”. Repara, assim, na “singularidade grave dos timbres” e na “eternidade dos silêncios” – como se regista na página 7 de “La voix humaine” (obra do poeta e romancista Jean Cocteau publicada em Paris, pela editora Stock, em 2015) –,criando “um texto minimalista com apenas um acto, um lugar, uma personagem e um telefone”.
“Neste drama a uma só voz, as falas da actriz respondem, numa aparente espontaneidade, ao interlocutor que ninguém ouve nem vê. A narrativa é sistematicamente interrompida pelas falhas da tecnologia ou por intervenções de outras personagens em linha, cujas vozes também nunca têm presença. Quase poderia chamar-lhe um diálogo a uma só voz, ou mesmo um monólogo a duas vozes: a da personagem e a do silêncio, ou voz ausente”, leio ainda.
De facto, lembrei-me deste belíssimo texto, ao encontrar um trabalho jornalístico de Mariana Ferreira, no Observador (edição de 23 de Agosto de 2024), intitulado “Não podem cantar, recitar ou falar. Afeganistão proíbe voz das mulheres em público”.
A jornalista começa por escrever que um novo “conjunto de leis de moralidade rigorosas inclui obrigação de cobertura total do corpo da mulher e a proibição do uso de cosméticos e perfume”.
E Mariana Ferreira prossegue, na sua peça jornalística: “O som da voz das mulheres em público tornou-se obje[c]to de repressão pelos dirigentes talibãs do Afeganistão ao abrigo de um novo conjunto de leis de moralidade rigorosas sobre vícios e virtudes do regime islâmico.”
“Um conjunto legislativo, com várias leis dirigidas às mulheres, foram promulgadas na quarta-feira [21 de Agosto], depois de terem sido aprovadas pelo líder supremo, Hibatullah Akhundzada, informou um porta-voz do governo afegão, citado pela CNN Internacional. Entre as novas regras, o artigo 13.º diz respeito às mulheres e aponta-lhes a necessidade de cobrir o corpo com um véu sempre que estiverem em público e cobrir o rosto para evitar a tentação e a tentação dos outros”, anota a jornalista do Observador.
Tudo isto prefigura um apartheid de género, impossível de tolerar e que devemos denunciar. Proibidas de usar vestuário que não cubra, na totalidade, o corpo e a identidade, surge agora esta nova restrição totalitária.
Imaginei que estas mulheres vão estar, futuramente, proibidas de andar na rua. Pois, se a voz é expressão do interior, também não poderão caminhar nas ruas, nas quais deixam rastos de sombras. Poderão sair à noite? E quando há luar? Enclausuradas para sempre, estas mulheres estão destinadas a uma morte lenta e silenciosa.
E que será das palavras das canções de embalar que estas mulheres guardam, desde meninas-mães, para oferecerem e acarinharem os seus filhos. Com quem aprenderão estes meninos a língua materna? É, sim, de língua materna de que se trata!
A voz humana é um mistério – no melhor sentido da palavra –, segredo e religiosidade. No teatro medieval, chamavam “mistérios” às representações teatrais.
Voltando à peça de Cocteau, a protagonista comenta ao amante distante: “[…] Você se lembra da Ivone, que não entendia como a voz podia passar através de um fio? Eu estou com o fio em volta do meu pescoço. Estou com a sua voz à volta do meu pescoço.”
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Nota final:
A 9 de Setembro de 2024, morreu Graça Lobo, mulher de uma carreira singular como actriz e encenadora. Tive a oportunidade de a conhecer e de privar com ela e com o seu companheiro, Carlos Quevedo, na década de 80, quando visitou a Madeira com o seu espectáculo “Há tanto tempo”. “Old Times”, contou com a tradução de Ricardo Alberty e com a encenação de Carlos Quevedo, interpretado por Catarina Avelar, Fernando Curado Ribeiro e Graça Lobo. A produção foi da Companhia de Teatro de Lisboa. Estreou a 12 de Outubro de 1978 no Teatro Nacional D. Maria II (na Sala Estúdio), como nos informou Paula Braga, do Centro de Documentação Teatral do TNSJ, a quem agradeço pela colaboração.
A voz de Graça Lobo foi a voz de muitos autores, entre eles, a escritora norte-americana Molly Bloom, a partir de “Ulisses”. Foi, igualmente, a voz de Mariana Alcoforado das “Cartas Portuguesas”, bem como de Luigi Pirandello, de Samuel Beckett e de Jean Genet. O seu desempenho de “Hedda Gabler”, de Henrik Ibsen, foi um dos seus maiores sucessos. E, em 2003, a voz de Anton Tchékhov numa visitação de “As Três (Velhas) Irmãs”, espectáculo a que assisti no Teatro Carlos Alberto (TNSJ). É, sem dúvida, imprescindível recordá-la na sua intervenção em Beckett, na qual a sua voz e boca eram perfeitos elementos para o discurso do autor irlandês.
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19/09/2024