Adília Lopes e a avó de Penamacor

Adília Lopes (1960-2024). (Divulgação Assírio & Alvim – sol.sapo.pt)
Conheci a Adília Lopes no ano de 1998, em Vila do Conde. Partilhámos um quarto num Festival de Poesia, em que participei como membro do júri de um concurso literário e como editora do livro “Eispoesia”.
Nesse Festival conheci ainda o Paulo José Miranda, outro elemento do júri, e também, no Intercidades, a caminho de Vila do Conde, a Helena Vieira e o Nuno Moura, da editora Mariposa Azual.
A intervenção de Adília Lopes no auditório de Vila do Conde, às 16 horas, numa tarde quente de abril, foi épica.

A poetisa, com muita firmeza e até alguma presunção na voz, lançou para a plateia o seu amor às osgas e aos gatos.
Falou-nos da possível reprodução sexual das pedras e desenvolveu os conceitos através de frases feitas e de versos de Sophia; tudo num despacho de quem trazia a aula bem preparada.
No final, saiu do palco e vem entregar a cada um dos presentes um marcador com uma frase bíblica (o meu tinha um pássaro), deixando em todos um silêncio de perplexidade.
Achei o espetáculo absolutamente desconcertante, divertido e estimulante. Nesse ano, conhecia de Adília Lopes apenas uns livrinhos (graficamente belíssimos) da Frenesi, e fiquei conquistada pela pouca-vergonha da autora. Ainda não sabia que se chamava Maria José e que o pai era natural de Penamacor.
Por razões que um dia explicarei melhor e que envolvem o António Lobo Antunes, o meu segundo encontro com a Adília Lopes, aconteceu em Coimbra, em novembro de 1999, na primeira atividade da produtora de atividades culturais Alma Azul.

Um programa de “Livros & Escrita”, que apresentámos no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), foi o ponto de partida para uma admiração genuína que mantenho, não tanto pelo que leio e escuto sobre a autora, mas muito pela sua inteligência, que se manifestava em tempo real e sem redes (sociais nem afetivas). Convidei para falar com a Adília Lopes, a Anabela Mota Ribeiro, que apresentava, na altura, um programa da RTP2: “Falatório”, programa de televisão desses anos noventa que encerravam o século XX e que recebia extraordinários convidados e sempre com um(a) jornalista de serviço em cada dia da semana: Catarina Portas, Pedro Rolo Duarte, Paula Moura Pinheiro, José Francisco Viegas e a Clara Ferreira Alves, que um dia reuniu num só programa Agustina Bessa-Luís, José Saramago, Luísa Costa Gomes e Miguel Esteves Cardoso.
Imaginam a Adília Lopes e a Anabela Mota Ribeiro a trocarem umas ideias sobre Poesia e Cultura no Foyer (cheio) do TAGV?
Foi ainda melhor do que conseguem imaginar.
Ao jantar, a Adília comentava com a mesma franqueza o melhor do teatro, do cinema, dos livros, num saber enciclopédico (mas bem digerido) que me deixou encantada.
Soube da sua ligação à Beira Baixa e não demorei a convidá-la para uma sessão de Poesia em Penamacor. Foram muitos os telefonemas (ainda em telefone fixo) que, bem escritos, davam para uma boa rábula de teatro de revista.
Eu a falar deslumbrada da Beira Baixa a uma alfacinha de gema; e ela a falar dos gatos que não podiam ficar sozinhos. Ela com uma educação esmerada a dizer-me que não; e eu a insistir em resolver o problema dos gatos durante a ausência de dois dias da dona da casa.

Até que desisti, ao perceber que a Adília Lopes não tinha nenhum interesse em regressar a Penamacor, onde, no edifício da Câmara Municipal, ainda está, creio, um painel do pai de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, o nome de batismo de Adília Lopes.
Creio que foram essas nossas conversas sobre a Beira Baixa que a levaram a escrever uma crónica na revista Pública (em 23 de abril de 2001) a que deu o título: “Penamacor”; e que eu ainda uso com frequência em oficinas de escrita: “Em Setembro ia com os meus pais e com a criada, a Maria, para Penamacor. Eu adorava ir logo de manhãzinha à horta com a avó Maria […] A avó Maria era áspera, de trato rude. Eu pendurava-me nas portas e dava muitos saltos para a ouvir dizer ‘és uma cavalona’. Queria ser uma maria-rapaz como a Zé dos Cinco. […] Uma experiência que muito me marcou, talvez uma das experiências mais marcantes da minha vida, aconteceu em Penamacor. Foi assim: eu julgava que as ovelhas eram muito macias e as cabras mais ásperas que as ovelhas. Ora em Penamacor havia rebanhos que passavam todos os dias pela rua da minha avó. Foi portanto muito fácil aproximar-me de uma ovelha e fazer-lhe uma festa e aproximar-me de uma cabra e fazer-lhe uma festa. A cabra era macia e a ovelha áspera. A realidade prega-nos partidas deliciosas” (sic).

Pois é! Se lermos com atenção Adília Lopes, reconhecemos, de imediato, o perigo da perceção que hoje, infelizmente, comanda a realidade política portuguesa.
Perceção bem mais perigosa que o exemplo que nos apresenta Adília Lopes.
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13/02/2025