Agenda Anticorrupção impulsionará a desejada reforma da Justiça
O Conselho de Ministros (CM) aprovou, a 20 de junho, a Agenda Anticorrupção, um pacote de mais de 30 medidas que materializa uma promessa e prioridade assumida pelo governo, desde o primeiro momento, e cujos desideratos principais são: regulamentar o lóbi, ter atenção às autarquias e à sua relação com empresas locais, repor a delação premiada na agenda, reforçando o seu alcance, criar uma “lista negra” de fornecedores do Estado e recorrer, mais vezes, aos juristas do Estado e menos a sociedades de advogados.
O regime do lóbi incluirá um Registo de Transparência (identificação dos representantes de interesses legítimos), um Código de Conduta do Registo de Transparência (regras para as relações com entidades públicas e registo de interesses) e uma Agenda Pública (registo de presenças, tópicos focados e decisões adotadas), pelo que o lóbi se tornará “transparente e a sua interação conhecida”. O registo da “pegada legislativa” (registo das entidades com intervenção direta na produção legislativa) será uma forma de escrutínio das decisões do governo. E a aprovação do plano de prevenção de riscos do governo, como previsto no seu código de conduta, tornará a ação do executivo mais sadia e transparente.
O recurso à assessoria do Estado, “em matérias ou projetos cuja complexidade ou dimensão não aconselhe de modo diverso, mediante o recurso aos gabinetes jurídicos do Estado e ao Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisAPP)”, assegura maior independência do Estado
O mecanismo de perda alargada de bens e de proventos económicos da corrupção, a favor do Estado, mesmo antes da condenação do arguido, esbaterá o enriquecimento ilícito.
Torna-se necessária a transparência e a celeridade na nomeação de dirigentes da Administração Pública (AP), assegurando à Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) as condições para o encurtamento dos tempos.
Outras medidas relevantes serão: a ampliação do período de proibição do exercício de funções públicas ou políticas; a criação de uma lista negra de fornecedores do Estado, com vista a “maior informação, quanto às entidades que corrompam agentes públicos e estejam impedidas do acesso à contratação pública”; a publicação de mais informação, de forma a permitir “à sociedade civil avaliar e escrutinar as políticas públicas”; a operacionalização de um canal de denúncias comum a todo o governo; e a elevação do valor das coimas no caso de incumprimento das regras de prevenção da corrupção.
No âmbito do funcionamento da Justiça, propõe-se: a maior capacitação do juiz para evitar expedientes dilatórios; a limitação do direito ao recurso “com intenção meramente dilatória”; o mecanismo de proteção para os denunciantes de corrupção e de cartéis na contratação pública; o alargamento das fases processuais e da tipologia de crimes que admitem colaboração premiada dos arguidos; a extensão da eletrónica à fase de inquérito, contribuindo para a simplificação dos procedimentos subjacentes a esta fase processual; a formação especializada permanente de magistrados, de funcionários judiciais e dos órgãos de polícia criminal, em particular em aspetos substantivos e processuais genericamente relacionados com a criminalidade económico-financeira; a dotação das magistraturas de uma assessoria técnica adequada, flexível e adaptável, potenciando maior celeridade na tramitação do processo; a publicitação das decisões judiciais de todos os tribunais, incluindo de primeira instância, como forma de contribuir para a transparência do sistema judicial; a tomada de medidas urgentes para a jurisdição administrativa e fiscal, pois, não é só pela justiça penal que se cria ambiente que evite a permeabilidade a fenómenos corruptivos (o governo constituiu uma Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias dos Contribuintes); e a avaliação da viabilidade de uma maior especialização dos tribunais, na medida em que seja constitucionalmente admissível (a Constituição proíbe a criação de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de determinadas categorias de crime).
Por fim, será elaborada a Estratégia Nacional Anticorrupção para o período 2025-2028, com base na avaliação da Estratégia 2020-2024, aferindo o grau de execução das medidas aí previstas, avaliando a eficácia das medidas implementadas e identificando as ainda não implementadas.
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No dia 18 de junho, a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice – acompanhada do ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, e, posteriormente, do secretário de estado Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Carlos Abreu Amorim – reuniu-se com os grupos parlamentares para anunciar que a Agenda Anticorrupção que iria ser discutida no Conselho de Ministros.
Rita Júdice afirmou que esta ronda de reuniões permitiu cumprir “mais uma etapa neste processo” e que a Agenda Anticorrupção “está concluída”. “Viemos dar nota disso aos grupos parlamentares e pedir-lhes que mantenham, naturalmente, este canal aberto de conversas e de futura colaboração”, explicitou, vincando que o trabalho de recolha de contributos, que começou junto dos partidos com representação parlamentar, se estendeu a cerca de 30 entidades, admitindo que “a luta anticorrupção é de todos”.
A governante precisou que a Agenda Anticorrupção inclui “mais de 30 medidas” em torno de “três eixos – prevenção, educação e repressão” – e que “toca muitos ministérios”.
Rita Júdice referiu que o governo procurou “consenso em matérias que são transversais” e que matérias “que não são tão consensuais ou que possam criar mais resistência, provavelmente[,] não serão apresentadas” ao Parlamento. Com efeito, como acentuou, “o governo não se demite da função de governar, assim como os partidos políticos com assento parlamentar não se estão a demitir de trazer as suas propostas ao Parlamento”, saindo desta discussão as soluções aprovadas.
É de recordar que, a 3 de abril, o primeiro CM do atual governo, decidiu, como uma das primeiras medidas, mandatar a ministra da Justiça para dialogar com todos os partidos com assento parlamentar, com agentes da Justiça e com a sociedade civil, tendo em vista a elaboração de uma agenda de combate à corrupção, num prazo de 60 dias. E, a 28 de maio, à margem da sua primeira audição parlamentar, a governante disse à agência noticiosa Lusa que o trabalho estava praticamente concluído: “Ouvimos muitas pessoas, muitas entidades, recebemos também alguns contributos escritos e estamos na reta finalíssima do que será uma agenda anticorrupção.”
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Depois da reunião com a ministra Rita Júdice, o Partido Socialista (PS) afirmou que o governo não deu espaço aos socialistas para apresentarem as suas propostas para o pacote anticorrupção que está a ser preparado, acusando o Executivo de fazer reuniões unilaterais e com “pouco diálogo”.
A líder parlamentar socialista, Alexandra Leitão, disse que as ideias do Executivo são vagas e que, no momento de o PS apresentar as suas propostas, o governo diz que entrará “em contacto e não entra”, tornando estas negociações “uma coisa unilateral”. “O que houve foi traços muito gerais que irão ser aprovados no Conselho de Ministros, em termos que também ainda não estão fechados dentro do próprio governo e que, depois, virão para a Assembleia, que é coisa que nós já saberíamos, porque nos termos da Constituição têm [de] vir para a Assembleia”, observou.
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O governo aponta a regulamentação da atividade de representação de interesses legítimos (lóbi) como umas das medidas que mereceu “consenso muito alargado no diálogo com os partidos com assento parlamentar” e que está em linha com as recomendações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e do Grupo de Estados Contra a Corrupção do Conselho da Europa (GRECO), devendo o novo regime incluir um Registo de Transparência, um Código de Conduta do Registo de Transparência e uma Agenda Pública.
Já o mecanismo de perda alargada de bens e de proventos económicos da corrupção visa combater o enriquecimento ilícito, pretende assegurar que os corruptos não ficam com o produto da conduta criminosa, o que, nos termos de dois diplomas em vigor, se presume que abranja a diferença entre o património e os rendimentos declarados em sede do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e os sinais de riqueza exibidos, embora o arguido tenha a possibilidade de provar que esta presunção não é verdadeira.
O governo reforçará a consulta pública nos processos legislativos e regulamentares do executivo, para incentivar a participação dos cidadãos, e potenciará a assessoria jurídica do Estado, “em matérias ou projetos cuja complexidade ou dimensão não aconselhe de modo diverso”. Garantirá à CReSAP meios para garantir “transparência e celeridade” nas nomeações, evitando nomeações em regime de substituição. Reforçará a atuação dos órgãos de controlo interno do Estado, responsáveis pelas atividades de auditoria e inspeção, recebimento de denúncias e respetivo tratamento, promovendo a sua maior articulação com as demais entidades com funções preventivas e repressivas.
O executivo liderado por Luís Montenegro promoverá a atividade plena do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), admitindo alterações à estrutura interna e ao modelo de governação do organismo. E, quanto à Entidade para a Transparência, aguardará a avaliação do seu funcionamento que revele, eventualmente, a necessidade de clarificação ou de robustecimento do quadro legal, sem prejuízo da avaliação da nova plataforma eletrónica e da introdução dos melhoramentos pertinentes.
Além disso, será incluído o tema da corrupção nos programas do ensino básico e secundário e de alguns cursos superiores e, igualmente, incentivada a investigação científica para conceção e execução de políticas anticorrupção, com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).
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Ainda no dia 20 de junho, a ministra da Justiça disse – em vídeo previamente gravado, na abertura da sessão de apresentação do “Relatório Modernização da Justiça – OCDE”, que decorreu na sede da Polícia Judiciária (PJ), na presença do diretor-geral daquela polícia, Luís Neves, e da Secretária de Estado da Justiça, Maria José Barros – esperar que a Agenda Anticorrupção “venha a impulsionar a tão desejada reforma da Justiça” em Portugal.
Rita Júdice referiu que, segundo a OCDE, os decisores políticos devem adotar políticas que tenham “o cidadão no centro das suas preocupações e ação”; e aproveitou para dizer que essa é uma preocupação do atual governo. A ministra – vincando que o relatório da OCDE aponta para a necessidade de criação de novos serviços da Justiça e para o reforço dos já existentes, nomeadamente os mecanismos de resolução alternativa de litígios – manifestou a intenção de alavancar o Centro de Arbitragem de conflitos de consumo.
Segundo a governante, a “Justiça precisa, não só de ser clara, como precisa de falar claro”, ou seja, “tornar simples o que é complexo” e ter “regras transparentes e objetivas”.
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Para que a Agenda Anticorrupção impulsione a reforma da Justiça, é preciso que todos queiram o combate à corrupção (titulares do poder político stricto sensu, magistrados, administração pública, órgãos de polícia criminal, empresários, profissões liberais, etc.) e que todos queiram a reforma da Justiça. E o que se vê por aí não é nada exemplar. Quase todos os dias se ouvem ou leem notícias sobre casos que podem não ser de corrupção no sentido literal, mas que têm o odor de corrupção. E pensar em atacar em tantas frentes é excessivamente poético.
A delação premiada, que, em tese, facilita a ministração da Justiça, pode surtir efeito perverso: o reforço da ocasião da condenação de inocentes, por vinganças pessoais ou por ajuste de contas. E a perda de bens a favor do Estado, mesmo que o processo seja arquivado, contraria a presunção de inocência (o mesmo não se aplica ao arreto cautelar, como medida de prevenção e de coação). Dizer que o arguido tem a possibilidade de provar que a presunção contra si é falsa inverte o ónus da prova que incumbe ao autor, não ao arguido.
A Agenda Anticorrupção, como outras agendas do governo, facilmente elaboradas em pouco tempo, não passam de carta de intenções, sem leis, sem regulamentos e sem quantificação orçamental. Para quem criticava o documento de António Costa e Silva, prévio ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), é espantosa esta metodologia.
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24/06/2024