Aos nossos velhinhos

 Aos nossos velhinhos

(Créditos fotográficos: Philippe Leone – Unsplash)

Tenho um poema que, a páginas tantas, entra num bambolear de incertezas: “Sou eu?… Não sei se sou!…” Tenho, em mim, tantas incertezas. Não caminho mais depressa do que as minhas pernas o permitem. Não sou o timoneiro do saber, nem da ignorância, nem da santidade e nem da malvadez. Não sei se nasci para ser isto que sou hoje. Se nasci e me moldei no que sou.

Falo Português porque nasci neste meu belo Portugal; mas também poderia ter nascido noutro espaço lusófono. Talvez falasse Francês, como língua materna, se tivesse nascido na Gália1. Leio a Torah (um dos elementos do Tanakh), o Alcorão e a Bíblia. E, de todos eles, bebo apenas o que a minha sede pede. Nada mais.

O melhor livro que li, foi, sem dúvida, a minha mãe. Ela era o meu tudo, embora eu não seja filho único. Fui o último, o que nasceu quando ela tinha idade para avó. Porém, fui o que esteve sempre com ela, até ao fim dos seus dias. A sua morada terrena sucumbiu, mas ela vive em mim como o oxigénio que respiro.

Leio a Torah, o Alcorão e a Bíblia. E, de todos eles, bebo apenas o que a
minha sede pede. Nada mais. (Imagem gerada por Inteligência Artificial –
artguru.ai)

Um dia, usei um termo figurativo, transformando uma mesa de café num planisfério, e disse a um amigo que gostaria de pousar os meus pés em cada centímetro quadrado daquela representação da superfície da Terra, tal é o meu gosto por viagens. Fiz algumas, até a 2011, quando fui visitar um cunhado emigrado em França e que sofria de cancro, já na fase terminal. A minha mãe receou que eu a quisesse abandonar. E chorou, chorou muito. Lá a convenci e fui. Mas ela não ficou bem!

Tive conhecimento do sofrimento dela e isso aumentava o meu desassossego. Enquanto permaneci no território francês, visitei diversos sítios e catedrais que, para mim, constituíam novidade. De facto, tenho um fascínio por catedrais, por palácios e por castelos.  Em cada visita nova, aumenta em mim um castelo de histórias. Então, vi muitos sítios, mas pouco ou nada vi. Sobretudo, por não estar ali, estava com o pensamento na minha mãe. O laço afectivo era demasiado forte para se romper na distância. A partir dessa época, até ela “se ir embora”, não voltei a viajar.

Um dia, usei um termo figurativo, transformando uma mesa de café num
planisfério, e disse a um amigo que gostaria de pousar os meus pés em
cada centímetro quadrado daquela representação da superfície da Terra,
tal é o meu gosto por viagens. (Imagem gerada por IA – artguru.ai)

O propósito daquela viagem era acompanhar o meu cunhado. Custou-me a despedida, mas, felizmente, ele ainda veio cá passar o mês de Agosto. O seu derradeiro Agosto. Regressei, pois, ao colo da minha mãe. Como ela chorou de alegria! E o brilho dos seus olhos aclarou aquele dia.

Fui um menino – julgo que serei sempre um menino – que adorou a escola. Mas custava-me, já nessa altura, deixar a minha mãe. Uma minha tia afirmava que tínhamos de semear para colher. Talvez o meu grande apego tenha sido o motivo para esta linda troca de sentimentos.

Quando caminhava com ela nos passeios das ruas, eu colocava-me sempre do lado de fora, para que ela não caísse na faixa em que circulam os carros. Em muitas ocasiões, depois de enviuvar do meu pai, eu deitava-me longos minutos ao lado dela e dava-lhe muitos beijos. E perguntava-lhe, abraçado a ela: – Quem é que gosta muito, mesmo muito, de si?

– Graças a Deus, gostais todos! Não tenho queixa de nenhum, mas tu és diferente.

– E de quem é que gosta muito, mesmo muito?

– Gosto de todos, mas tu és diferente.

– Os meus irmãos que não saibam disto… – observei, gracejando. Realmente, eles tinham essa noção, porque eu e a minha mãe éramos uma flor da mesma raiz.

Eu ando pelas ondas da vida e vejo a que abandono são atirados os nossos velhinhos. Considere-se que os nossos pais nos higienizaram milhares de vezes, não nos deixando os rabinhos com chichi por mais de breves instantes. E que também nos ergueram do chão, nos sacudiam o pó da roupa, nos enxugavam as lágrimas e nos embalavam no mais terno dos colos, sempre com o maior dos carinhos.

Fui um menino – julgo que serei sempre um menino – que adorou a escola. Mas custava-me, já nessa altura, deixar a minha mãe. (Imagem gerada por IA – new.express.adobe.com)

A flor precede o fruto. O fruto cresce, amadurece, vai-se esparramando e segue a lei da vida. Chega uma hora em que os próprios pais precisam de fraldas. Alguns dos filhos cuidam, mas, quase sempre, com alguma má vontade e muitos resmungos.

Na vida, somos – praticamente todos – professores ou educadores. Gostamos de ver as crianças e os jovens a progredirem. Porém, a sina do fim de ciclo é a decrepitude. Poucos compreendem a decrepitude ou o envelhecimento. Por defeito ou por erro crasso (porque deriva de uma má compreensão ou de uma análise deficiente), o “chip” (ou circuito integrado) das pessoas não aceita que os seus mais próximos estejam a regredir, a esquecer o que lhes foi ensinado e apreendido pela bela sabedoria da vida. E os nossos velhinhos, que eram tão capazes nos auges das suas vidas, encontram-se, agora, nas rectas finais. Estão, mesmo, a andar para trás. Não há paciência que aguente isto. Sem dúvida, apesar de adultos, continuamos egoístas perante aqueles que nos ajudaram a ser o que somos.

Por defeito ou erro crasso, o “chip” (ou circuito integrado) das pessoas não aceita que os seus mais próximos estejam a regredir, a esquecer o que lhes foi ensinado e apreendido pela bela sabedoria da vida. (Imagem gerada por IA – new.express.adobe.com)

Um casal cria a sua casa. A casa vai-se enchendo com os filhos. Os filhos crescem e saem do lar de incubação. O casal fica-se pelo número 2, sozinho. Se um filho tem um azar na vida, os pais recebem-no com todo o espaço da casa e do coração. Se ainda aparece outro filho que tenha vivido circunstâncias maioritariamente negativas ou infortúnios, trazendo consigo maus feitios e bagagens e a sua própria descendência atrelada, o casal também acolhe o filho e os netos, com todo o espaço da casa e do coração.

Todavia, quando há uma mudança positiva e as coisas melhoram nas vidas dos filhos, eles regressam novamente às suas vidas. Mais uma vez, o casal fica-se pelo número 2, sozinho. Morre um elemento do casal: o viúvo fica só. Na realidade, são tantos os casos em que fica só, condenado às garras negras da solidão. De forma geral, as pessoas têm sempre um lugar em casa para os filhos, mas raramente estes têm um lugar para os pais.

Que sociedade é esta que tem elementos que esquecem quem nunca os teve fora da memória? Que valores preenchem a filosofia de vida da actualidade? Os nossos pais, os nossos avós, os nossos antepassados são mais do que uma simples peça de dominó que nos antecede. Sem raízes, não aproveitaríamos bem o chão que nos viu nascer e que nos ajuda a desenvolver, nem teríamos forças para procurar o Sol.

Assim, termino com um provérbio que nos permite reflectir sobre a maneira como cada pessoa exerce a parentalidade: “Filho és, pai serás; assim como fizeres, assim acharás.” Pensem nisto!

Sem raízes, não aproveitaríamos bem o chão que nos viu nascer e que nos ajuda a desenvolver, nem teríamos forças para procurar o Sol. (Imagem gerada por IA – artguru.ai)
Mapa da Gália em, aproximadamente, 58 d.C.
(pt.wikipedia.org)

Nota:

1 – Informa-nos a Wikipédia que a Gália era uma região que compreendia os actuais territórios da França, da Bélgica, dos Países Baixos, de grande parte da Suíça, do Norte da Itália e da Alemanha, a oeste do rio Reno.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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23/01/2025

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José Torres Gomes

José Torres Gomes é natural da localidade de Belinho, no concelho de Esposende. O facto de ser portador da doença degenerativa de Stargardt (ou seja, uma distrofia macular hereditária de início juvenil caracterizada por atrofia macular bilateral) tem-lhe agravado a acção da visão central, a ponto de não ler o que escreve pelo seu próprio punho. O contacto com a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) trouxe-lhe novas esperanças na realização do seu sonho. Concretizou uma formação para a aprendizagem dos "softwares" de leitura de textos digitais, particularmente o “JAWS” (um leitor de ecrã desenvolvido para utilizadores de computadores cuja perda de visão os impede de ver o conteúdo do ecrã ou de navegar com um rato), transitando para o “NVDA” ("non visual desktop access"). A partir de então, passou a escrever regularmente no computador. Assim, em 2010, editou o seu primeiro livro, intitulado “Os ossos também falam”. No ano seguinte, publicou a obra “Nunca mais te vi”. Em 2013, lançou o seu terceiro livro: “Gente sem governo”. Na sua quarta obra, em 2015, experimentou a poesia com “A inquietude do silêncio”, título que agora adapta para o seu espaço de escrita no jornal "sinalAberto". Já em 2018, começa a exercitar a sua escrita no domínio da literatura para a infância e publica “O elefante branco”, ilustrado por Geandra Lipa. Em 2020, edita, igualmente para os mais novos, o livro “Zé Trinca-Espinhas e as letras do lago”, com ilustrações de Alexandra de Moraes. O seu mais recente livro para a infância “O menino que queria ser árvore” (homónimo de uma obra do autor brasileiro Fabiano Tadeu Grazioli) foi ilustrado por Carla Sofia Cardoso. Entretanto, tem participado em várias antologias.

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