As fábulas

 As fábulas

(netmundi.org)

Na minha modesta biblioteca, as fábulas, os contos, os mitos e outras narrativas ocupam um certo volume que traduz o meu interesse por estas matérias. Juntamente com o teatro, a literatura do fabuloso é uma das minhas preferidas. Os contos dos  Irmãos Grimm – Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) –, de Hans Christian Andersen, de Edgar Allan Poe e de Charles  Perrault; as fábulas de Esopo e, mais tarde,  as de Jean de La Fontaine, da Condessa de Ségur (Sophie Feodorovna Rostopchine), conhecida como uma das iniciadoras da literatura infanto-juvenil, mesmo quando a sua primeira obra deste género foi escrita quando ela já tinha 58 anos. E por que não citar o conto de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, datado de 1756, com o título “A Bela e o Monstro”, versão muito longe Disney, levado ao cinema, magistralmente, pelo poeta e dramaturgo Jean Cocteau?

(culturagenial.com)

Da minha infância, lembro um pequeno livro de fábulas que começava assim: “No tempo em que os animais falavam…” Da tradição greco-latina, a palavra “fábula”, etimologicamente, aponta o significado de “falar”, acção que, atribuída a animais ou a seres inanimados, é responsável pelo carácter “maravilhoso” do género. É natural que, naquele tempo, os animais, retratados nestas curtas narrativas, deviam falar e ter uma mesma linguagem, senão como poderia a esperta raposa lisonjear o vaidoso corvo para lhe roubar o queijo? Ou como poderia a ligeira lebre desafiar a lenta tartaruga numa corrida?  

As fábulas aparecem-nos como lições de moral, dos comportamentos que são imitação nos animais e nos seres humanos, daquilo que, no teatro, sempre foi uma divisa da comédia: “ridendo castigat mores” (no Dicionário de Português Michaelis, a frase significa “corrige os costumes sorrindo”). 

“Capuchinho Vermelho” (ou “Chapeuzinho Vermelho”) ilustrado por Gustave Doré (DP). (jotdown.es)

Sobre este assunto, recomendo a leitura de um artigo da autoria de Maria Irastorza1 que revisita o tema, destacando o papel de figuras clássicas como a do lobo no “Capuchinho Vermelho” e na história do menino “Pedro e o Lobo”, bem como de “Os Três Porquinhos”, em que, nas primeiras histórias, se castiga a desobediência e a mentira; enquanto, na última fábula, se louva o trabalho e não a preguiça.

Também aludindo ao conto “A Roupa Nova do Imperador”, de Hans Christian Andersen, no qual o autor assinala que o pânico de ficar fora socialmente contribui para a aceitação de uma mentira que é, apenas, desvendada por uma inocente criança. Veja-se ainda um apelo ao trabalho e à poupança na fábula “A Cigarra e a Formiga”, quando o trabalho compensa em relação à vida despreocupada da cigarra. 

(geekninja.com.br)

No Mundo Antigo, a linguagem universal era a música, estando presente no mito de Orfeu, como também na Bíblia, ao aparecer no episódio de a Arca de Noé – pelo menos, assim está retratado naquele interessante filme “A Bíblia” (de 1966), realizado por John Huston, no qual ele, como actor e intérprete de Noé, conduz os animais para o interior da Arca, tocando uma espécie de um aulo antigo (conhecido por tíbia, em Latim).  

Os contos e as fábulas ajudaram-me na construção de um imaginário que, sendo breve nas narrativas, se faria mais extenso no teatro, tanto nas comédias como nas tragédias. Sem pretender ser moralista, todo o teatro leva um ensinamento moral, social e histórico; e assim o atravessou toda a sua História, tanto no domínio da literatura como no espectáculo! 

 Finalmente, em relação ao tema das fábulas e dos contos, quero citar uma obra fundamental que nos ajuda na interpretação dos contos, recorrendo ao livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas – O significado e a importância dos contos de fadas”, de Bruno Bettelheim2. Esta obra aborda, os contos de fadas “como um instrumento importante, porque prendem a atenção dos mais jovens enquanto os divertem e lhes transmitem ensinamentos”. Ou seja, são “narrativas que usam uma linguagem simbólica, própria da infância, na sua abordagem dos medos, desejos e dilemas universais.” “O mesmo acontece com as figuras arquetípicas, que, respeitando e dialogando com a visão mágica infantil, propõem soluções exemplares que ajudam a lidar com as ansiedades, a enfrentar inseguranças e a assumir responsabilidades”, é igualmente registado na respectiva sinopse.

(Direitos reservados)

Prosseguindo a descrição da obra, lemos que “integra literatura, mitologia, psicologia infantil e psicanálise, destaca o valor atemporal dos contos de fadas e incentiva os adultos, especialmente os pais e os educadores, a reconhecerem o seu papel essencial no desenvolvimento emocional e moral das crianças”. 

No meu anterior artigo (na edição de 28 de Agosto de 2025), quando lembrei os 50 anos de carreira teatral da actriz Emília Silvestre, falei da colaboração musical do maestro José Luís Borges Coelho, que nos deixou mais pobres, naturalmente, com a sua partida. Recordo o nosso relacionamento sempre cordial e amável. Fui o seu companheiro na aventura da Cooperativa de Ensino Superior Artístico do Porto (CESAP) – hoje, Escola Superior Artística do Porto (ESAP). Ele foi o meu director académico e presidente do Conselho Científico. Dele terei sempre belas recordações! 

Actor Luís Lucas. (arquivos.rtp.pt)

Também nos deixou o actor Luís Lucas. Lembro-me dele nos grupos Cómicos e Teatro da Cornucópia, especialmente no espectáculo “Woyzeck”, de Georg Büchner, entre outras peças de teatro.

De ambas as partidas, quero registar os seguintes artigos do jornal Público. O primeiro apresenta-se com o título “Morreu Luís Lucas, um actor incandescente”, da autoria de Tiago Bartolomeu Costa, cujo texto de abertura destaca que foi fundador do Teatro A Comuna e colaborador próximo de Jorge Silva Melo e de Luis Miguel Cintra, tendo tido “uma presença marcante no teatro e no cinema português do pós-25 de Abril”.

(instagram.com/abrilabrilpt)

O segundo artigo do mesmo diário tem o título “José Luís Borges Coelho (1940-2025), o maestro que ensinou para uma sociedade melhor”. Na aludida peça jornalística, Diana Ferreira escreve que “José Luís Borges Coelho, músico e cidadão […] se distinguiu pela sua intervenção cívica, maioritariamente associada à música, perseguindo o ideal de construção de uma sociedade melhor através de uma forte aposta no ensino […]”.

A terceira peça jornalística, igualmente do Público, é a crónica da autoria de Luis Miguel Cintra intitulada “Luís Lucas, adeus!”. Neste texto de opinião, o actor e encenador Luis Miguel Cintra, em sentida homenagem a Luís Lucas, começa por recordar: “Foi sim, como tanta gente tem dito, foi uma pessoa que viveu de uma maneira diferente, única, inventando o passar do tempo como ninguém, como se já soubesse que a vida que gostaríamos de ter não ia durar o tempo suficiente para conhecer tudo, sem qualquer proibição nem caminho traçado. Soube como ninguém, guiado pelo desejo e pela curiosidade, prezar o que lhe foi acontecendo, alheio a hierarquias ou a padrões de comportamento e não desprezando coisa nenhuma, nem pessoa, nem lugar. E foi de verdade, com extremo pudor e sempre em busca de um carinho que fosse universal, e de uma lealdade férrea que um dia havia de ser natural em toda a gente, que construiu tudo o que foi a sua vida, sem nenhuma violência.”

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Notas:  

1 Texto “Las fábulas, instrucciones de uso para el presente”, da autoria de María Irastorza, publicado em Jot Down Cultural Magazine

2 No livro “Psicanálise dos contos de fadas”, Bruno Bettelheim apresentou as histórias como eram contadas nos seus primeiros registos, com a presença da violência quase brutal e dos tabus, como o do incesto. Seguindo as ideias freudianas, afirmava que essa violência é inerente ao ser humano e que, por isso, atrai tanto a atenção das crianças. Isso explicaria, por exemplo, por que o lobo fascina tanto os mais pequenos. O conto de fadas recriava, também, a saga do herói: a busca das origens, o enfrentamento de problemas, a superação dos obstáculos e a obtenção da glória e do sucesso. (Ver: Revista Educação | Bruno Bettelheim e a psicanálise dos contos de fadas – Revista Educação). 

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04/09/2025

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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