“Avecs” em agosto: uma crónica de identidade, saudade e estereótipos

 “Avecs” em agosto: uma crónica de identidade, saudade e estereótipos

Imagem do filme “A Gaiola Dourada”, do realizador luso-francês Ruben Alves. (espalhafactos.com)

Uma família na praia, no pico do calor de agosto. Pai e mãe nas toalhas, enquanto uma criança constrói um castelo na areia, a outra salta nas rochas, verdes com algas e a brilhar com o reflexo do sol. “Jean-Pierre, tu vas tomber!”, grita o pai. O miúdo não liga. O aviso repete-se: “Jean-Pierre, tu vas tomber!”

Nesse momento, Jean-Pierre escorrega e cai. “Ai caraças, que ele partiu a cabeça”, diz o pai, enquanto a mãe corre na direção da criança, gritando: “Ai meu rico João Pedro!” Levantado-se devagar, o João diz: “Pá, podiam ter avisado!” A piada é clássica e o seu alvo também: o estereótipo do emigrante que saiu de Portugal e que voltou a falar Francês, vulgarmente, conhecido como um “avec”.

Este estereótipo pode descrever-se como um “azeiteiro” ou uma espécie de parolo exportado. Alguém cujo comportamento no país de origem, entre sentimentos de superioridade e faltas de respeito, pode ser desagradável e cair muito mal a quem ficou. Como cronista da emigração, vejo-me obrigado a avaliar o que, de facto, é um “avec” e se eu que vivo fora de Portugal há mais de dez anos – também sofro deste tipo de comportamento, mesmo sem falar Francês. E se desenvolvi características avec e nunca notei? Ponhamos as ideias no papel, utilizando a seguinte listade comportamentos “avec”.

  • A ruidosa chegada à festa (e/ou bar) da aldeia

Com o calor de verão, vêm as festas e, com elas, chegam os primos da França. Depois das praias, os bailaricos são o melhor local para encontrar e para estudar um “avec” em férias, onde costumam chegar em carros de gama alta, vestidos como futebolistas e a fazer barulho. E, claro, a falar noutro idioma, até que chega o momento da verdade e se descobre que não são turistas, mas sim a família do Zé Tó, filho da Ti Maria, do Cortiço de Cima.

(© Viseu Now)

Na sua pior versão – a que desperta o típico ódio contra “avecs” –, são barulhentos e não respeitam regras básicas, porque estão de férias. Na sua versão normal, são apenas pessoas que procuram o descanso e o conforto mental que não têm onde vivem, porque, quer se queira quer não, um expatriado só está 100% bem na sua cultura.

Imagine, caro leitor, que se encontra na mesma situação. Um ano longe dos hábitos com o qual se criou, a viver de acordo com regras diferentes das que nos foram incutidas. Ao voltar, é fácil cair em excessos. Pior ainda se são pessoas já nascidas e criadas noutro país. Esta é a cultura delas e, ao mesmo tempo, não é. Lidar com esta dualidade pode resultar em excessos e em comportamentos menos corretos.

Pontos avec para o autor da crónica: 0/5 – acho que não estive na festa da minha aldeia na última década.

  • Os carros

A maneira mais fácil de distinguir “avecs” de turistas é procurar um símbolo da Federação Portuguesa de Futebol no vidro traseiro dos carros de alta cilindrada, com matrículas da França, da Suíça ou afins. As pessoas emigram para encontrar melhores condições de vida e um bom carro é uma marca de estatuto, uma maneira simples de mostrar o sucesso que atingiu. Trazê-lo a Portugal foi, durante muitos anos, uma tradição que começou a perder força com os voos low cost –e com a subida dos preços dos combustíveis, em geral –, mas continua a existir. Dizem as más-línguas que, por vezes, os carros são alugados.

(me7adedalaranja.blogspot.com)

Primeiro, acho que não precisamos de sair de Portugal para encontrar pessoas que querem impressionar os outros com os seus veículos. Segundo, ninguém que sai do país quer voltar e admitir que nem tudo é perfeito ou que o sucesso desejado não apareceu. Todos temos inseguranças e este é mais um sintoma de como se tenta lidar com elas. Desde que cumpram as regras da estrada e as cortesias habituais, não tem porque ser mau, mas, claro, os excessos de alguns criam estereótipos para os outros.

Pontos avec para o autor da crónica: 0/5 – teria medo de riscar um veículo caro e nunca entendi o gosto por fazer viagens de carro que duram dias.

  • Tatuagens e roupa

É também fácil reconhecer um “avec” particularmente, um que emigrou jovem ou as primeiras gerações de filhos de emigrantes pela maneira como se vestem, quando passeiam pela feira mais próxima da aldeia. Durante muitos anos, eram os únicos que tinham tatuagens algumas em honra de Portugal (ou a Cristiano Ronaldo) , vestem camisolas da Seleção, calções de ganga e bonés. Levado ao extremo, um fio de ouro bem grosso, para ser óbvio que estamos perante alguém que singrou na vida. Brinco na orelha, ténis brancos e uma bolsa a tiracolo completam o ensemble (ou o conjunto).

(© Marco Dias Roque)

Pelas roupas de marca e pelos carros, identificamos um padrão de elementos externos de sucesso, mas algo que não pode ser tão óbvio são as roupas e as tatuagens de Portugal. Ser emigrante é querer gritar “sou português” e não poder, até porque ninguém entenderia. A roupa acaba por ser uma maneira de o fazer mais dissimuladamente. Sim, há algo de presunção, mas as motivações não têm por que ser apenas más.

Pontos avec para o autor da crónica: 0,5/5 – Não tenho tatuagens nem uma camisola da Seleção, mas tenho um casaco do Benfica e soltaria uma lágrima se alguém, um dia, o reconhece em Londres.

  • Dizer coisas noutro idioma

Se a roupa e os carros não foram suficientes, o terceiro elemento clássico para reconhecer um “avec” é a tendência de comunicar em Francês e não em Português, como demonstra a piada que abre esta crónica. Uma atitude utilizada com frequência em restaurantes, na hora de pedir comida. Outro exemplo de superioridade e de tentativa de sofisticação, que pode revelar-se de mau gosto, se é feito com o propósito de ser condescendente com quem ficou na terrinha.

(Créditos de imagem: Getty Images)

Se ignoramos quem o faz de propósito, esta até é das mais fáceis de entender, porque, quando se vive noutro país, as palavras infiltram-se na nossa cabeça durante o dia a dia e assumem o espaço de outras. Isto tem de ser particularmente confuso para quem já nasceu ou cresceu noutro país: em casa fala-se uma língua, na escola outra. Assim, os cabos acabam por cruzar-se e, por extensão, a identidade também. Afinal, se há crianças, em Portugal, que desenvolvem um sotaque brasileiro devido, por exemplo, aos vídeos da Pepa Pig no YouTube, parece-me claro que a vida do João Pedro é mais simples se se chama Jean-Pierre. Quem o faz de propósito, certamente, não precisou de emigrar para ser desagradável.

Pontos avec para o autor da crónica: 1,5/5 – Não falo noutra língua, mas, muitas vezes, só me lembro de palavras em Espanhol ou em Inglês. Por culpa do Espanhol, também digo coisas que só têm lógica na minha cabeça como “baixar” em vez de “descer” as escadas.

  • Devoções às divindades nacionais (e amor pelo Cristiano Ronaldo)

Existem três coisas dignas de adoração para um “avec”: Fátima, futebol e (antes que esta crónica se complique) a comida portuguesa. Estar emigrado dá medo. Por isso, é bom ter a ajuda de Deus. A fé também cria uma atividade básica para as férias: a ida ao Santuário de Fátima. O futebol personificado, nos últimos 20 anos (!), em Cristiano Ronaldo reduz a saudade. Mesmo longe de casa, a Seleção Portuguesa de Futebol está sempre mais perto e é um elemento de unidade cultural. Finalmente, chega a comida que aquece corações. O problema é que, claro, chegado o verão, a cerveja fica ainda melhor e bebe-se demasiado.

(fatima.pt)

Pensemos no contexto. Fora de Portugal, que coisas aparecem nas notícias ligadas ao nosso país? Futebol e Cristiano Ronaldo, certo? Além disso, vivendo fora, cada vez que se sentam para comer e querem um bitoque, lembram-se que aqui não há. Em particular, ao crescerem entre o mundo cultural dos pais e o do país de acolhimento, é normal tentarem encontrar pontos de referência e agarrarem-se a eles em busca de uma identidade. Sim, algumas destas devoções são levadas ao extremo, mas não são mais do que um sintoma da saudade.

Pontos avec para o autor da crónica: 2,5/5 – Com todo o respeito a Fátima e ao futebol, este ponto é totalmente dedicado à comida portuguesa. Se pudesse, comia uma bifana agora.

Pirâmide do Louvre, em Paris. (Créditos fotográficos: Daniele D’Andreti – Unsplash)

Ou seja, muito dos comportamentos que vemos terão origens menos óbvias. O que não justifica atitudes pouco corretas. Porém, ajuda a ter alguma empatia pelos outros. Um idiota será sempre idiota. Com isso, não há muito a fazer. Todavia, nem todos o fazem por mal. E, para quem se aborrece de verdade com eles, a verdade é que os “avecs” são uma espécie em vias de extinção. A emigração evoluiu e o Mundo mudou. Alguns dos comportamentos que criaram o estereótipo não eram mais do que o reflexo da época e de um contexto social. Por muita má fama que tenha, este não é mais do que um dos muitos exemplos da História da emigração portuguesa. Na realidade, importa recordar que quem sai do país não tem o monopólio na hora de ser azeiteiro.

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08/08/2024

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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