Biblioterapia: quando a leitura se torna um remédio para a alma

 Biblioterapia: quando a leitura se torna um remédio para a alma

Helena Nogueira Martins, médica interna de Medicina Geral e Familiar da USF Pulsar, no Centro de Saúde Norton de Matos, em Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

No coração de Coimbra, um projeto inovador está a transformar a relação entre a saúde e a literatura. Helena Nogueira Martins, jovem médica interna de Medicina Geral e Familiar da USF Pulsar – unidade de saúde familiar sediada no Centro de Saúde Norton de Matos –, lidera uma iniciativa em que utiliza os livros como forma de cuidar não apenas do corpo dos pacientes, mas, sobretudo, da mente e da alma.

“A medicina e a literatura, unidas, oferecem aos pacientes uma nova forma de cuidar da alma”, diz a jovem médica Helena Martins. (© VJS – sinalAberto)

A ideia surgiu a partir de conversas entre Helena Martins e a sua orientadora na USF Pulsar, a também médica Rita Reis Santos, ambas leitoras vorazes. “A leitura sempre foi o nosso escape, depois de dias complexos de trabalho. Um dia, pensámos: e se os livros também fossem parte da terapêutica?”, refere Helena Martins. E assim, ainda inspirada por práticas internacionais, como a “prescrição literária” já aplicada no Reino Unido, a clínica decidiu implementar a biblioterapia como um complemento ao acompanhamento médico convencional. Passou então, mensalmente, a “prescrever” livros como se fossem medicamentos com a preocupação de garantir que estes podem ser de acesso gratuito, através das bibliotecas públicas e plataformas digitais como a BiblioLED (biblioteca pública para Leitura e Empréstimo Digital – https://www.biblioled.gov.pt/about).

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Do consultório para milhares de utentes

(facebook.com/USFpulsarcoimbra)

O projeto cresceu rapidamente. Em cada mês, uma nova “receita” literária é enviada por e-mail, com a indicação de que os “Livros são o melhor remédio”, a milhares de utentes das unidades de saúde USF Pulsar, USF Briosa e USF Norton de Matos.

Segundo Helena Martins, em abril, a newsletter foi enviada a todos os utentes da USF Pulsar (via e-mail), graças ao apoio da coordenadora Rosa Costa. As restantes (duas) unidades apenas têm afixados os cartazes com as sugestões mensais nas salas de espera.

Neste mês de maio, os utentes receberam a “prescrição” do livro “O Rapaz do Pijama às Riscas”, de John Boyne. E, ainda, a sugestão de uma utente com a indicação dos “Três Livros da Minha Vida”, ideia que surgiu no seguimento do feedback que Helena Martins obteve de utentes que têm acompanhado a iniciativa, criando em complemento uma rede de recomendações entre leitores.

Em cada mês, uma nova “receita” literária é enviada por e-mail, com a
indicação de que os “Livros são o melhor remédio”, a milhares de utentes
das unidades de saúde USF Pulsar, USF Briosa e USF Norton de Matos.
(© VJS – sinalAberto)

Emília Correia, farmacêutica de 52 anos, é uma das utentes que se envolveu na iniciativa. É ela quem, neste mês, sugere a leitura de “O Perfume”, de Patrick Süskind, de “A Ilha”, de Victoria Hislop, e de “Nexus – História Breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à Inteligência Artificial”, de Yuval Noah Harari.

Para esta utente, o impacto foi imediato: “Fez-me sorrir, pois, achei muito original uma ‘prescrição’ não de medicamentos, mas de livros, sob a forma de prescrição médica eletrónica. Achei a iniciativa muito interessante, porque os livros sempre foram uma grande companhia para mim. São companhia e terapia”.

Embora ainda não tenha lido os livros propostos por estar a terminar outro, já tem um dos títulos em lista de espera: “A Bela do Senhor”, de Albert Cohen. De forma convicta, Emília Correia destaca que esta “é uma excelente terapia, não só pela parte de conhecimento que traz, mas pela ‘companhia’, pelo preencher do tempo e da mente”. Salientando que “a prescrição pode não ser apenas de livros de carácter lúdico”, a farmacêutica observa: “Se for utilizada para ajudar os utentes a conhecerem melhor a doença que têm ou a lidar com os sintomas, ou até para conhecer testemunhos de outras pessoas com a mesma condição, surge como uma vertente complementar da terapia convencional”.

Neste mês, a sugestão é a leitura de “O Perfume”, de Patrick Süskind, de “A Ilha”, de Victoria Hislop, e de “Nexus – História Breve das Redes de Informação da Idade da Pedra à Inteligência Artificial”, de Yuval Noah Harari. (Direitos reservados)

A biblioterapia, embora pouco divulgada em Portugal, tem raízes antigas. O termo foi usado pela primeira vez em 1916, quando médicos e bibliotecários do Hospital Militar de Alabama, nos Estados Unidos da América, começaram a recorrer aos livros para ajudar soldados a lidarem com traumas de guerra. Em Portugal, a prática tem vindo a ganhar reconhecimento, especialmente em áreas como a Saúde Mental e a Educação, dado que tem vindo a ser cada vez mais admitido, por diversos profissionais, que os livros são um instrumento valioso que contribui para o bem-estar emocional. “Queremos usar os livros como outros países já usam, onde há prescrição oficial de livros por médicos. Aqui, ainda é visto como algo acessório”, explica Helena Martins.

“Muitos utentes vêm à consulta não com dores físicas, mas com dores da alma. E os livros, nesse caso, podem ser um remédio”, salienta a clínica Helena Martins. (Imagem gerada por IA)

Os livros escolhidos pela jovem médica procuram responder às emoções mais comuns em contexto clínico: as situações de luto, a solidão, a ansiedade ou, simplesmente, a necessidade de evasão, permitindo que os utentes encontrem apoio e orientação nos enredos e personagens das obras. “Muitos utentes vêm à consulta não com dores físicas, mas com dores da alma. E os livros, nesse caso, podem ser um remédio”, salienta a clínica.

Também Ana Dias, administradora hospitalar e utente da USF Pulsar, quando se deparou com a iniciativa, identificou-se de imediato com o conceito. “Nunca abro nada, mas quando vi a palavra ‘biblioterapia’ no e-mail, impressionou-me logo. Leio há muitos anos e tenho interesses muito específicos, nomeadamente nas áreas da teoria política, da História ou da etimologia”, destacou Ana Dias, que foi quem sugeriu a Helena Martins a rubrica “Três Livros da Minha Vida”.

(pequenosleitoresdamarinhagrande.blogspot.com)

Ana Dias, que afirma ter a “doença dos livros”, destaca que, para si, “a leitura é uma fonte de prazer e felicidade”. “É uma maneira de estar sozinha, mas acompanhada, sem ter de conviver com pessoas”, justifica. Salienta que os livros, os quais gosta de manusear e de cheirar, e a leitura moldaram a sua vida desde a infância. “Cresci numa família tradicionalista. Como menina, não podia sair de casa, mas descobri que a maneira de viajar pelo Mundo era ler. Da minha janela, descobria o Mundo através dos livros e, desde então, eles sempre foram a minha forma de ir aonde quero, sem barreiras”, afirma.

Além disso, Ana Dias recorda com carinho a biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian, na Marinha Grande, que, para si, foi um espaço de paz e de felicidade: “Era um sítio mítico, uma casa cheia de livros onde consumia tudo que podia. Os livros são o meu refúgio, a minha memória. E são essenciais para mantermos viva a nossa identidade.”

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Expansão e colaboração

A iniciativa já ultrapassou os muros do centro de saúde. O projeto já chegou às escolas. A primeira sessão de biblioterapia foi realizada com uma turma do 3.º ano do ensino básico, na qual se discutiram temas como a empatia e o bullying, a partir de uma leitura orientada. “Foi uma experiência muito rica. A literatura é uma porta aberta para o diálogo, mesmo com os mais pequenos”, conta Helena Martins.

Como declara Helena Martins, o conceito “tem ainda sido referenciado e adaptado por médicos de outras áreas, como os profissionais do hospital psiquiátrico Sobral Cid, que implementaram sessões regulares de biblioterapia para os seus pacientes”. (© VJS – sinalAberto)

A atividade “mostrou-se promissora, despertando o interesse de professores e de educadores para futuras colaborações. O objetivo é o de passar por criar, no futuro, clubes de leitura e sessões temáticas em vários contextos comunitários”, salienta a médica. Além destas propostas de intervenção, Helena Martins também já contactou o médico Carlos Martins, criador e dinamizador da página online ou portal MGFamiliar, onde decorrem formações dirigidas a médicos, em particular, médicos de família, além de constituir um espaço de partilha de conhecimentos e de experiências, incluindo a da biblioterapia.

Segundo Helena Martins, o conceito “tem ainda sido referenciado e adaptado por médicos de outras áreas”. Refira-se que, no hospital psiquiátrico Sobral Cid, os profissionais da Casa das Artes implementam sessões regulares de biblioterapia junto dos pacientes, envolvendo enfermeiros e outros profissionais de saúde, bem como a administradora hospitalar Ana Dias.

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Um futuro promissor

Apesar de a biblioterapia ser uma prática com mais de um século de existência, em Portugal, ainda está em fase de exploração e de adaptação. Helena Martins vê grande potencial na iniciativa e procura consolidar a metodologia, reunindo profissionais de saúde, bibliotecários e escritores que possam contribuir com sugestões e experiências. A intenção é clara: “Transformar a leitura numa ferramenta terapêutica acessível a todos, promovendo o bem-estar emocional e psicológico através do poder das histórias.” “A medicina e a literatura, unidas, oferecem aos pacientes uma nova forma de cuidar da alma”, diz a médica.

(facebook.com/USFpulsarcoimbra)

Não obstante ainda não existirem estudos conclusivos sobre a eficácia da biblioterapia como substituta de medicamentos ou de terapias convencionais, “a aceitação tem sido positiva e crescente”. “Ainda não conseguimos medir cientificamente os impactos, mas sentimos o efeito nas conversas, nos sorrisos e nos olhares dos nossos utentes”, sublinha a Helena Martins.

O futuro deste projeto de ler como parte da cura, que começou tímido, promete agora crescer e influenciar ainda mais a forma como se encara a saúde holística, implementando, por exemplo, sessões presenciais, clubes de leitura, novas parcerias e a formação de mais profissionais de saúde nesta área. Um trabalho que passará sempre, como reforça Helena Martins, por procurar dar resposta a uma simples pergunta: “E se, em vez de comprimidos, receitássemos palavras?” Afinal, como dizia o escritor e historiador escocês, Thomas Carlyle, “os livros são amigos que nunca nos abandonam”.

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Com apenas 27 anos, Helena Martins é um exemplo de dinamismo e de
compromisso com a saúde comunitária. (© VJS – sinalAberto)

Perfil de Helena Nogueira Martins

Com apenas 27 anos, Helena Martins é um exemplo de dinamismo e de compromisso com a saúde comunitária. Natural de Barcelos, cresceu entre livros, incentivada pela mãe, professora de Português e de Francês. Está, atualmente, no 3.º ano do internato de Medicina Geral e Familiar e a concluir uma pós-graduação em Sexualidade Humana. Para a jovem médica, este projeto é mais do que um trabalho: “É deixar uma marca no lugar onde estou a ser formada, retribuir à comunidade o que esta me dá.” Entre as suas fontes de inspiração está Sandra Barão Nobre, a primeira biblioterapeuta reconhecida em Portugal, autora do livro “Ler para Viver”.

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26/05/2025

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Licínia Girão

Licínia Girão é jornalista e, também, uma jurista preocupada com as questões da liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, assente num compromisso com a verdade e com a observância do Estatuto do Jornalista e do Código Deontológico. Desassossegada na defesa de um Jornalismo isento, rigoroso e credível, praticado por jornalistas independentes, tem vindo a dedicar-se a estudos e a exercer formação nestas áreas. Presidiu à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

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