Breves discursos de premiados com o Nobel da Literatura
No dia 10 de Dezembro, o rei Carlos Gustavo da Suécia entregou a Han Kang o Prémio Nobel de Literatura de 2024. A autora sul-coreana agradeceu com um discurso no qual reflectiu sobre o paradoxo que se tece entre a beleza e a violência do Mundo: “Enquanto escrevia o meu terceiro romance, ‘A Vegetariana’, entre 2003 e 2005, algumas perguntas dolorosas passavam pela minha cabeça: pode uma pessoa tornar-se completamente inocente? Até que ponto podemos rejeitar a violência? O que acontece àqueles que se recusam a pertencer à chamada espécie humana?
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Desde que era uma criança, eu queria saber. A razão pela qual nascemos. A razão pela qual o sofrimento e o amor existem. Essas questões foram feitas pela literatura por milhares de anos, e continuam a ser feitas até hoje. Qual o sentido de nossa breve estadia neste mundo? Quão difícil é permanecermos humanos, venha o que vier? Na noite mais escura, há uma linguagem que pergunta do que somos feitos, que insiste em imaginar um caminho para dentro das perspectivas em primeira pessoa das pessoas e seres vivos que habitam este planeta; linguagem que nos conecta uns aos outros. A literatura que se compromete com essa linguagem, inevitavelmente, detém um certo calor corporal. Tão inevitavelmente quanto o trabalho de ler e de escrever fazem frente a todos os actos que destroem a vida. Eu gostaria de compartilhar o significado deste prémio, que é de literatura, convosco — que, aqui de pé, fazem juntos frente à violência. Obrigada.”
Menciono, também aqui, alguns momentos dos escritores latino-americanos que receberam o Nobel, em todos os discursos encontramos o compromisso com a língua herdada, com a poesia, com as realidades históricas de cada país e com as tradições do meu continente de origem.
Pablo Neruda: Prémio Nobel da Literatura, em 1971
O escritor galardoado descreve a sua fuga à ditadura, em 1927, para alcançar a fronteira com a Argentina: “O meu discurso será uma longa viagem, uma viagem minha por regiões, longínquas e antípodas, não menos semelhantes à paisagem e à solidão do Norte. Refiro-me ao extremo sul do meu país. Nós, chilenos, afastamo-nos tanto até tocar o Pólo Sul com os nossos limites, que nos parecem ser a geografia da Suécia, que toca o norte nevado do planeta com a cabeça. Ali, por aquelas extensões da minha terra natal, onde acontecimentos já esquecidos em si mesmos me levaram, eu tenho de atravessar, eu tive de atravessar os Andes, procurando a fronteira do meu país com a Argentina.
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Escolhi o difícil caminho da responsabilidade partilhada e, em vez de reiterar a adoração do indivíduo como o sol central do sistema, preferi, humildemente, entregar o meu serviço a um exército considerável que, por vezes, pode cometer erros, mas que caminha incansavelmente e avança todos os dias, enfrentando tanto os anacronistas recalcitrantes como os apaixonados impacientes. Porque acredito que os meus deveres como poeta não só me indicavam a fraternidade com a rosa e a simetria, com o amor exaltado e a saudade infinita, mas também com as tarefas humanas ásperas que incorporei na minha poesia.
Há exactamente cem anos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: ‘A l’aurore, armes d’une ardente patience, nous entreron aux splendides villes.’ (‘Ao amanhecer, munidos de ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades.’)
Acredito nessa profecia de Rimbaud, o vidente. Venho de uma província obscura, de um país separado de todos os outros pela sua geografia afiada. Eu era o mais abandonado dos poetas e a minha poesia era regional, dolorosa e chuvosa. Mas você sempre vê confiança no homem. Nunca perdi a esperança. É por isso, talvez, que eu tenha chegado até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira.
Para concluir, devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro se exprimiu naquela frase de Rimbaud: só com ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens.
Assim, a poesia não terá sido cantada em vão.”
Gabriel García Márquez: Prémio Nobel de Literatura em 1982
“Num dia como hoje [21 de Outubro de 1982], o meu professor William Faulkner disse neste lugar: ‘Eu me recuso a admitir o fim do homem’. Não me sentiria digno de ocupar este lugar que foi seu se não tivesse plena consciência de que, pela primeira vez desde as origens da Humanidade, o desastre colossal que ele se recusou a admitir há 32 anos não passa, agora, de uma simples possibilidade científica. Perante esta realidade avassaladora que, ao longo de todo o tempo humano, deve ter parecido uma utopia, os inventores de fábulas que acreditam em tudo, sentem-se no direito de acreditar que ainda não é tarde demais para empreender a criação da utopia oposta. Uma nova e devastadora utopia de vida, em que ninguém pode decidir pelos outros nem mesmo o caminho para morrer, onde o amor é verdadeiramente verdadeiro e a felicidade é possível, e onde as linhagens condenadas a cem anos de solidão, finalmente e para sempre, têm uma segunda chance na terra.
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“Em cada linha que escrevo, tento sempre, com maior ou menor sucesso, invocar os espíritos esquivos da poesia, e tento deixar em cada palavra o testemunho da minha devoção às suas virtudes de adivinhação e à sua vitória permanente contra os poderes surdos da morte. O prémio que acabo de receber entendo-o, com toda a humildade, como a revelação consoladora de que a minha tentativa não foi em vão. É por isso que convido todos vós a brindar aquilo que um grande poeta das nossas Américas, Luis Cardoza y Aragón, definiu como a única prova concreta da existência do homem: a poesia”.
Miguel Ángel Asturias: Prémio Nobel de Literatura em 1967
“Alicerces. Escadas. Novos vocabulários. A recitação primitiva dos textos. Os rapsodos. E depois, novamente, a trajectória quebrada. A nova linguagem. Longas cadeias de palavras. Pensamento acorrentado. Até voltarmos a sair, depois das mais ferozes batalhas lexicais, às próprias expressões. Não há regras. Se inventam. E depois de muita invenção, os gramáticos vêm com a sua tesoura de podar a língua. O Espanhol americano é muito bom, mas sem o hirsuto. A gramática torna-se uma obsessão. Correndo o risco da antigramática. E é aí que estamos agora. A busca pelas palavras actuantes. Outra magia. O poeta e o escritor do verbo activo. Vida. Suas variações. Nada pré-fabricado. Tudo em ebulição. Não para fazer literatura. Não substituir as palavras pelas coisas. Procurar as palavras-coisas, as palavras-seres. E, além disso, os problemas do homem. A evasão é impossível. O Homem. Os seus problemas. Um continente que fala. E isso ouviu-se nesta Academia. Não nos peçam genealogias, escolas, tratados. Trazemos as probabilidades de um mundo. Confiram. São únicos. O seu movimento, o diálogo, a intriga romanesca são singulares. E o mais singular, que ao longo dos tempos a sua criação constante não foi interrompida.”
Gabriela Mistral: Prémio Nobel da Literatura em 1945
Modesto e humilde, como tudo na sua pessoa, o discurso de Gabriela Mistral é um retrato único de quem foi, em toda a sua vida, uma embaixadora da paz e uma professora insigne: “Por uma fortuna que me ultrapassa, sou, neste momento, a voz directa dos poetas da minha raça e a voz indirecta das muito nobres línguas espanhola e portuguesa. Ambas estão felizes por terem sido convidadas ao convívio da vida nórdica, toda ela assistida pelo seu folclore e poesia milenares.
Que Deus mantenha intacta a Nação exemplar, o seu património e as suas criações, a sua proeza de preservar os imponderáveis do passado e de atravessar o presente com a confiança das raças marítimas, vencedoras de tudo.
O meu país, aqui representado pelo nosso erudito Ministro Gajardo, respeita e ama a Suécia e eu fui convidado aqui para vos agradecer a graça especial que nos foi concedida. O Chile guardará a vossa generosidade entre as suas mais puras lembranças.”
Mario Vargas Llosa: Prémio Nobel da Literatura em 2010
“A leitura transformou o sonho em vida e a vida em sonho e colocou ao alcance o pedacinho de homem que eu era no universo da literatura. A minha mãe disse-me que as primeiras coisas que escrevi foram continuações das histórias que li, porque lamentava que tivessem terminado ou porque queria emendar o final. E talvez tenha sido isso o que passei a vida a fazer sem o saber: prolongando no tempo, à medida que crescia, amadurecia e envelhecia, as histórias que enchiam a minha infância de exaltação e aventura.
As línguas são realidades mais vastas do que as entidades políticas e históricas a que chamamos nações. Um exemplo disso são as línguas europeias que falamos na América. A situação peculiar das nossas literaturas, em comparação com as da Inglaterra, [da] Espanha, [de] Portugal e [da] França, depende precisamente deste facto básico: são literaturas escritas em línguas transplantadas. As línguas nascem e crescem num solo; são alimentadas por uma história comum. Arrancadas do seu solo nativo e da sua própria tradição, plantadas num mundo desconhecido e sem nome, as línguas europeias enraizaram-se nas novas terras, cresceram com as sociedades americanas e transformaram-se. São a mesma planta e são uma planta diferente. As nossas literaturas não viveram passivamente as vicissitudes das línguas transplantadas: participaram no processo e apressaram-no. Muito cedo, deixaram de ser meras reflexões transatlânticas; por vezes, têm sido a negação das literaturas europeias e outras, mais frequentemente, a sua réplica.”
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06/01/2025