Carlinhos da Sé: uma lição de verdadeiro orgulho de ser quem se é
Seria, talvez, ainda Abril. Ou, então, já estávamos no início de Maio. As chaimites, no Porto, ainda se mantinham de vigilância espalhadas pela cidade. E quando havia um desentendimento, alguém chamava os soldados e tudo acalmava. Sem repressão nem medo. Por respeito, gratidão e simpatia mútua. Pois: era 1974, em Portugal. Estávamos todos a descobrir a Liberdade no real. Não eram mais as ideações que fazíamos. Tinha acontecido mesmo: o regime caíra, por acção do Movimento das Forças Armadas (MFA), velho e revelho a que chegara. Mais visivelmente de como o novo regime descambou para este que também já está revelho de velho. Sem emenda, sem reforma possível, cheio de vícios e tão emaranhado em si mesmo que não se vislumbra por onde pegar para desfazer os nós cruzados. Como foi possível atingir esta degradação, nem eu compreendo. Mesmo gente com valores éticos e valor de acção, aceleradamente derrapa e cai na pocilga onde nos roçamos como porcos de pele ressequida. O vírus da morte da Democracia propaga-se mais rápida e virulentamente que a covid-19, com a própria capa de se auto-intitular Democracia!
Mas atenção! Abril de 74 não tem, rigorosamente, nada a ver com isto de agora. Pode ter tido os seus erros, mas era genuíno. Aliás, em Abril cabiam muitos Abris, conforme os sonhos de cada qual. Alguns inconciliáveis no plano dos rumos político-sociais que se quisessem dar. Mas havia, em todos eles, repito, uma verdade genuína. O que talvez nos tornasse exaltados nas ideias, mas tolerantes perante o nosso contrário. Ao menos naquele início.
Era um início que não cabia, vivencialmente, nas cartilhas ideológicas, fossem elas de quem fossem. A Liberdade invadia tudo, acima de tudo. A maior parte de nós só a conhecia de palavra ou de experiência já de gravata no exílio. Só muito poucos se haveriam de lembrar dela, de tantos anos que passara aprisionada. Era uma grande festa, sem dúvida. Talvez mesmo, como lhe chamou, verrinoso e inteligente, o António José Saraiva, uma romaria. Mas era uma romaria quase surrealista de libertária de ideias, e de corpos, que era. Alguns episódios, com o seu quê de naïf, até, mas com algumas consequências nada certas, pareciam, vistas à distância, o tal manicómio em autogestão, como lhe chamou Almeida Santos. Mas não é aí que estamos. Nem aí nem nas conspirações, verdadeiras, que começaram a fazer-se, para que tudo não passasse de uma muda de fato. E o que vou contar, se tem alguma coisa de naïf, é em haver espaço, sentido, para a ter de contar. Ela, por si, é séria e assertiva.
Então, voltemos ao dia a que me referi no início. Passaria pouco do meio-dia e eu desembocara, pela Rua do Bonjardim, em Sá da Bandeira, na esquina do café A Brasileira. Umas centenas de pessoas discutiam entre si. As vozes elevavam-se. Havia gritos de incitamento para que o homem entrasse lá dentro. E lá dentro, no café, tinham fechado as portas. Os ânimos tinham começado a levantar-se. Havia mesmo alguns que protestavam contra aquele fechar de portas sem saberem, exactamente, porquê. E o porquê não passava de a simplicidade do conhecido Carlinhos da Sé querer tomar o seu “cimbalino” no icónico café e os donos, mais uns tantos a apoiá-los, indignados com semelhante desfaçatez.
O Calinhos da Sé era um homossexual assumido, que, quando lhe perguntavam onde ia, de saca na mão, o pé a chinelar e um avental a querer ser saia, se não ensaiava e respondia: “Vou comprar fruta prò meu home!” Apesar de quase todos o olharem como uma caricatura, a verdade é que ele estava entre os primeiros cem, ou nem isso, homossexuais a assumirem-se antes do 25 de Abril. E mais raro, pelo facto de ser um homem do povo, da Sé, onde se diria que poderia correr riscos de levar uma carga de pancada machista. Mas não! No meio de um conservadorismo moral maior no Porto do que em Lisboa, havia, entre os humildes, um sentido de solidariedade e de terreno próprio, que, entre eles, aceitavam muito mais o Carlinhos da Sé como era, mesmo que com risos e espicaçando-o, do que os que viessem de fora dizer mal do homem. Era essa outra face de um Porto sempre liberal e cioso de si mesmo.
O Carlinhos da Sé não “lutava” pelo direito à homossexualidade, ele vivia a sua homossexualidade, simplesmente. E, naquele momento, o Carlinhos da Sé certamente não foi à Brasileira para reivindicar o direito gay. Foi porque o café A Brasileira não era lugar onde entrassem as pessoas do povo. Ali, faziam-se até muitas conspirações imaginárias contra o regime e até para matar Salazar! Mas no bom recato da burguesia. Pés descalços ou calçados pobremente nem se atreviam a aproximar-se. Não havia porteiros a impedir nem chamadas de polícia. Nada disso. Era uma lei que vigorava, implicitamente, entre uns e outros. Por isso é que o Carlinhos da Sé terá querido tomar café num local que, antes, lhe estava vedado pela sua condição social e não por ser gay. E ia como ele era: um homossexual assumido, mais nada.
A reacção negativa de alguns, passava pelo facto, para eles hediondo, de ainda por cima ser um “panasca” a querer ir ali! Os outros, em maioria, que o apoiavam, também se esqueciam com facilidade da opção sexual do Carlinhos. Ele, gay ou não gay, “panasca” ou não “panasca”, pobre ou não, tinha o mesmo direito que todos tinham. Era uma afirmação mais profunda e mais importante do que bandeiras a desfilar numa pseudo-provocação porque são manifestações autorizadas e, felizmente, a sociedade tornou-se mais tolerante nesse aspecto.
Mas ali, naquele dia, aquela mole humana, depois coadjuvada pelo MFA, a dar-lhe legitimidade de se interpretar a Liberdade como plena, “obrigou” a que os donos de A Brasileira abrissem as portas e o Carlinhos tomasse, com toda a normalidade, aquele “cimbalino” que, muito provavelmente, sonhara como uma utopia: fazê-lo no emblemático café portuense. Choveram aplausos, vivas à Liberdade e muita, mesmo muita gente, a dizer a outros, que “cada um é como quer”. E, quando à saída quiseram fazer do Carlinhos da Sé o herói do dia, tentando até içá-lo acima das cabeças, o Carlinhos gritou que o pusessem no chão que “tinha muita roupa em casa pra dar a ferro”. Com a mesma dignidade com que lá dentro não consentiu que ninguém lhe oferecesse o café. Pagou-o, após o beber, e saiu.
E a singeleza nobre do seu acto deixou, ali, algumas centenas de pessoas que não “desmobilizaram” e que trocaram argumentos sobre o direito à liberdade das escolhas sexuais. Porque, infelizmente, ainda importa fazê-lo perante muita gente com teias de aranha no “sótão”. Isso sim, agora, o folclore ou os disparates fundamentalistas de até as palavras não poderem ter género, não. Para o Carlinhos da Sé isso era uma ofensa. Havia de ir agora comprar “frute” para o seu “não-mulher”? Não: ele queria comprar fruta para o seu “home”.
Esta, para mim, foi, em Portugal, a primeira manifestação popular na rua em defesa da homossexualidade, vendo-a e tratando-a como ela é e deve ser: uma escolha individual. Nem mais nem menos do que a heterossexualidade ou a bissexualidade ou os “q+” todos, que não me interessam para nada, porque o que me interessa é a liberdade de cada um fazer as suas escolhas individuais, sem interferência de terceiros: seja a condenar, seja a aplaudir. Trata-se de um direito. Ponto final. Foi isso o que o Carlinhos da Sé, sem mais exuberância do que aquela que o caracterizava, fez. Ele “só” foi tomar um café à Brasileira. Sem bandeiras e sem palavras de ordem…
Ah, “ganda” Carlinhos da Sé!
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Nota:
Esta crónica não é ficcional. Presenceie-a e não a “colori”.
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20/07/2023