Chacina no Rio: a barbárie como arma eleitoral e geopolítica

 Chacina no Rio: a barbárie como arma eleitoral e geopolítica

Complexo do Alemão, um conjunto de mais de treze favelas que, somadas, têm uma população maior que 65 mil habitantes. (pt.wikipedia.org)

Uma cabeça decepada, cabelos pintados de vermelho, exposta numa árvore no meio da mata. Em frente, no chão, o corpo decapitado. A cena circulou pelas redes e é a imagem mais cruenta da chacina promovida pelo governo do Rio de Janeiro na “Operação Contenção”, nos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte, e que produziu pelo menos 121 cadáveres – quatro deles, policiais – no dia 28 de outubro, na mais letal ação policial de que se tem notícia no país.

Para quem pensa que é assim mesmo que deve ser, porque afinal traficantes são cruéis, usam esses métodos contra os seus rivais e devem ser tratados na mesma moeda, seria oportuno lembrar que o agente policial é um servidor público obrigado ao cumprimento da lei, e que o Brasil, oficialmente, não tem pena de morte.

Tropas brasileiras durante uma operação na Rocinha, em 2008. (en.wikipedia.org)

Seria oportuno, mas provavelmente inútil, diante de quem está convicto de que bandido bom é bandido morto. Inclusive porque as polícias, país afora, são adestradas pela mesma lógica.

Que não nos deixe mentir o canto de guerra da Polícia Militar do Pará, neste vídeo que circulou em 2019: “Arranca a cabeça e deixa pendurada / É a Rotam patrulhando a noite inteira / Pena de morte à moda brasileira.”

Ou o do Bope, a tropa de elite do Rio, há muito conhecido: “Homem de preto, qual é sua missão? / É entrar lá na favela e deixar corpos no chão.”

Inicialmente, noticiou-se o número já absurdo de 64 corpos, mas, aos poucos, foram se juntando mais e mais, resgatados pelos moradores no meio da mata, formando um tapete de cadáveres envolvidos em lençóis e em mantas, que os parentes tentavam identificar ali mesmo.

(Créditos de imagem: Ildo Nascimento – instagram.com/ildo.nascimento.31)

Seria o caso de um pronunciamento em rede nacional ou, pelo menos, de uma condenação enfática desse massacre. Mas o presidente Lula da Silva preferiu a cautela e publicou uma nota em que apenas assinalava a necessidade “de um trabalho coordenado que atinja a espinha dorsal do tráfico sem colocar policiais, crianças e famílias inocentes em risco”. Lembrava também o sucesso da “maior operação [a Carbono Oculto] contra o crime organizado da história do país, que chegou ao coração financeiro de uma grande quadrilha envolvida em venda de drogas, adulteração de combustível e lavagem de dinheiro”, sem disparar um tiro.

Talvez tenha agido assim porque soubesse do apoio da maioria da população a ações violentas como aquela, atestado em pesquisas de opinião realizadas no calor da hora. E porque, dias antes, havia feito uma declaração infeliz durante uma conferência de imprensa em Jacarta, em resposta a recentes afirmações do presidente Donald Trump sobre operações militares contra narcotraficantes: “Os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também.”

(Créditos de imagem: Ildo Nascimento – instagram.com/ildo.nascimento.31)

Que diferença em relação ao discurso de um mês antes, na abertura da 80.ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas: “É preocupante a equiparação entre a criminalidade e o terrorismo”, “usar força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento.” Porém, agora, falava de improviso. Retratar-se-ia logo depois, mas o estrago já estava feito.

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O apelo à intervenção estrangeira e a “bukelização” do Brasil

Em fins de agosto, na Argentina, realizou-se a Conferência de Defesa Sul-Americana, com a presença de representantes de todos os países ao sul do Panamá, à exceção da Venezuela. Na ocasião, o comandante norte-americano afirmou a preocupação com o crescimento do crime organizado transnacional na região.

No início de setembro, os Estados Unidos da América iniciaram os ataques a barcos venezuelanos por suspeita de tráfico. No dia 23 de outubro, o senador Flávio Bolsonaro sugeriu, em sua conta no X, as mesmas providências para combater as “organizações terroristas” na Baía de Guanabara. Em seguida, Lula da Silva deu a desastrada declaração que ajuda a reforçar o estereótipo da esquerda como defensora de bandido. Finalmente, o governador do Rio, Cláudio Castro, aliado de Bolsonaro, deflagra a megaoperação que mobiliza 2500 policiais e provoca o caos na cidade, diante da disseminação de boatos e da ação de membros da mesma facção que atuavam noutros bairros. No fim do dia, vem a público cantar vitória e acusar o governo federal de não lhe ter prestado ajuda: “O Rio está sozinho nesta guerra.” Não era verdade, como ele próprio reconheceria, pois não havia pedido ajuda nenhuma.
Mas não é isso o que vai aparecer nos “cortes” que circulam nas redes, e que é o que vale, para quem quer acreditar neles.

Especialmente importante foi a sua insistência em falar em “narcoterrorismo”, figura inexistente na tipificação penal brasileira. Não foi casual.

(Créditos de imagem: Ildo Nascimento – instagram.com/ildo.nascimento.31)

Em 30 de setembro, a Agência Pública informava sobre a articulação de líderes do Centrão e do bolsonarismo no Congresso em torno de uma “pauta-bomba” que “facilitaria ‘intervenções estrangeiras’ no campo da segurança no Brasil”, com a aprovação do regime de urgência para a votação do projeto de lei 1283/2025, que enquadra “milícias, facções, organizações paramilitares, grupos criminosos ou esquadrões” no crime de “terrorismo”. Em 29 de outubro, voltou ao tema, destacando o uso da chacina para acelerar a votação do projeto de lei, prevista para o dia 11 de novembro.

Na newsletter distribuída em 1 de novembro, o repórter Gilberto Nascimento, do Intercept Brasil, regista que a extrema-direita tem comemorado a chacina nas redes sociais e chamado o governador do Rio de “o Bukele brasileiro”, em referência ao presidente salvadorenho Nayib Bukele. Menciona também a atitude do deputado bolsonarista Nikolas Ferreira, campeão de votos nas últimas eleições, que, durante o massacre, “postou nas redes sociais uma foto com centenas de presos seminus, com a cabeça rapada, amontoados no pátio de uma cadeia em El Salvador”, com o recado: “Se algum dia chegarmos lá, minha ideia é essa. Tá avisado.”

Uma infinidade de estudos já demonstrou a instrumentalização política da “guerra às drogas”. Os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro não deixam muita dúvida quanto ao tipo de trunfo que a extrema-direita vai utilizar nas eleições do ano que vem.

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03/11/2025

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Sylvia Moretzsohn

Sylvia Debossan Moretzsohn atuou como repórter nos principais jornais do Rio de Janeiro e depois como professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense, onde se aposentou. É mestre em Comunicação e doutora em Serviço Social e mantém a sua atividade de investigação, autónoma ou vinculada a grupos de pesquisa em Portugal (na Universidade do Minho) e no Brasil (nas universidades federais do Rio Grande do Sul e do Ceará). Tem inúmeros trabalhos publicados na área de crítica dos “media” e, na sua atividade académica, dedicou-se principalmente à discussão das relações entre o jornalismo e a vida quotidiana e das transformações no mundo do trabalho dos jornalistas no contexto das novas tecnologias. Atualmente, concentra-se no estudo do processo de desinformação comandado pelas “big techs” e do seu investimento na chamada inteligência artificial generativa, com o objetivo de identificar as formas contemporâneas de alienação e as possibilidades de combatê-la.

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