Cidadania nas escolas, essa coisa ideológica!
O primeiro-ministro, Luís Montenegro, defendeu, no dia 21 de Outubro, com grande pompa e circunstância, no encerramento do 42.º Congresso do Partido Social Democrata (PSD), que o seu governo tinha a intenção de rever os programas do Ensino Básico e Secundário, e que estava na hora de se alterar, na escola, essa polémica e perigosa disciplina que se atreve a ensinar cidadania. Essa coisa ideológica que está amarrada a projetos ideológicos ou de fação.
Como já defendeu Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos de Escolas Públicas, “o ensino da cidadania não é um problema das escolas, mas, sim, um problema dos políticos”. E eu atrevo-me a acrescentar, até, que é também um problema de saber que concepção de política educativa tem, hoje, este governo.
Recuando a 2020, podemos recordar que a Educação para a Cidadania já foi motivo de aturada polémica por causa de dois irmãos de Famalicão que faltaram às aulas dessa disciplina, durante um ano. Os dois alunos faltaram a essas aulas por decisão dos seus pais, que alegaram objeção de consciência por causa dos temas tratados na disciplina, em particular, as matérias relativas à Educação Sexual e as relativas à Igualdade de Género. Todos ainda recordarão que o caso de Famalicão acabou em disputa judicial com o Ministério da Educação, porque o Conselho de Turma reprovou os dois alunos. Mas isso são águas passadas. O tema regressa, agora, com novos contornos.
Quem ouviu, recentemente, em Braga, o primeiro-ministro sobre esta matéria só pode concluir que ele conhece bem o programa do Chega. Tal como o programa de tal partido, também o senhor primeiro-ministro defende que o Estado não pode continuar a impor a Educação para a Cidadania. E só lhe faltou dizer, como diz o Chega, que “esta disciplina funciona ideologicamente e transforma as aulas em laboratórios de engenharia social massificada”. No seu programa, o Chega refere, explicitamente, que “os conteúdos da disciplina não oferecem princípios científicos que sejam política e ideologicamente neutros”.
Claro que podemos, desde já, abrir aqui um breve parêntesis e perguntar se os senhores de tal partido, e até os do PSD e muitos outros de vários quadrantes políticos, conhecem as teses de Paulo Freire e de outros autores que, há muito, nos ensinaram que não há educação neutra. Paulo Freire é claro no seu pensamento quando defende que “além de um acto de conhecimento, a educação é também um acto político”. “É por isso que não há pedagogia neutra”, observa. E foi também o mesmo Paulo Freire que referiu que “não existe educação neutra; toda neutralidade afirmada é uma opção escondida”.
Mal foi conhecido a promessa de Luís Montenegro, anunciando que ia libertar a disciplina das amarras ideológicas, logo surgiram reacções por parte dos restantes partidos. Citaremos apenas as mais significativas. Assim, João Costa, ex-ministro da Educação do Partido Socialista (PS), classificou a decisão anunciada como um retrocesso, sobretudo, num momento em que existem manifestações de cariz racista e xenófobo, considerando que alterar tal disciplina é retirar da escola a educação do respeito pelo outro e para a valorização da diferença.
Na mesma linha se pronunciou a ex-ministra Mariana Vieira da Silva, defendendo que o ataque à disciplina de Cidadania é uma forma de aproveitamento político que em nada favorece uma sociedade actual, cada vez mais extremada.
Do lado Bloco de Esquerda veio uma opinião semelhante, que levou Mariana Mortágua a considerar que o Governo da República “aproveita a boleia do PS” para “ganhar o elogio do Chega”.
Já o Partido Comunista Português, pela voz de Belmiro Magalhães, veio defender que a “escola pública precisa é de mais professores, mais auxiliares, investimento nos próprios edifícios da escola”. E que, por isso, fazer mudanças na disciplina de Cidadania “não é seguramente a questão prioritária”.
Entretanto, entrou em cena o ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, que se apressou a argumentar que a revisão da disciplina “não é o tema mais importante do sistema educativo” e que se insere num plano de revisão que está a ser feito a todas as disciplinas.
Tivemos também outras reacções e merece destaque a posição da presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), Mariana Carvalho, que veio reconhecer a necessidade de rever a disciplina de Educação para a Cidadania e a necessidade de clarificar os conceitos programáticos, em temas que sejam mais complexos. Acrescentou, no entanto, que “a igualdade de género não tem a ver com questões ideológicas e que é preciso desmistificar”.
Será que quem anuncia esta medida e todos aqueles que lhe batem eufóricas palmas conhecem, realmente, as linhas orientadoras da disciplina? Alguém pode ter dúvidas de que enquanto processo educativo, a educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo?
O que terá assim de tão perigoso a educação para os direitos humanos; a educação ambiental; o desenvolvimento sustentável; a educação rodoviária; a educação financeira; a educação do consumidor; a educação para o empreendedorismo; a educação para a igualdade de género; a educação intercultural; a educação para o desenvolvimento; a educação para a defesa e a segurança; a educação para a paz; a educação para o voluntariado; a educação para os media; a dimensão europeia da educação; a educação para a saúde e a sexualidade? Não estaremos de acordo de que são, todos, temas importantíssimos para educar cidadãos e cidadãs mais responsáveis, mais críticos, mais emancipados, mais interventivos e mais livres?
Mas há sempre um mas! E, por isso, os mais conservadores já disseram e continuarão a dizer que há ali matérias perigosas, como a educação para a igualdade e género e como a educação para a sexualidade. A educação nestas áreas, fundamentalmente a maneira como é processada, dá argumentos aos que pretendem as alterações anunciadas. Perante este desejo de mudança, pelas tais razões ideológicas, parece-nos importante perguntar: quantos dos que que querem estas alterações, em algum dia, se deram ao trabalho de ler aturadamente, só a título de exemplo, estes dois documentos fundamentais: “Educação para a Cidadania – Linhas Orientadoras”, da Direcção-Geral da Educação, em 2019; e o “Guião de Educação: Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário”, da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, com coordenação de Cristina Vieira, publicado em 2017?
Não pretendemos citar, aqui, o extenso documento das Linhas Orientadoras para a Cidadania. Mas, uma vez que as áreas mais polémicas são duas, citemos o que se defende a propósito dessas duas áreas. Assim, relativamente à Educação para a Igualdade de Género, aí se alega que “visaa promoção da igualdade de direitos e deveres das alunas e dos alunos, através de uma educação livre de preconceitos e de estereótipos de género, de forma a garantir as mesmas oportunidades educativas e opções profissionais e sociais”. E também que este processo se configura “a partir de uma progressiva tomada de consciência da realidade vivida por alunas e alunos, tendo em conta a sua evolução histórica, na perspetiva de uma alteração de atitudes e comportamentos”.
Perante estes propósitos, que podemos nós dizer? Têm ou não têm total sentido? Terá sentido continuar-se numa educação cheia de estereótipos e de preconceitos, sejam eles relativos ao sexo masculino ou ao sexo feminino?
Quanto à Educação para a Saúde e a Sexualidade, as linhas orientadoras do mencionado documento defendem que se “pretende dotar as crianças e os jovens de conhecimentos, atitudes e valores que os ajudem a fazer opções e a tomar decisões adequadas à sua saúde e ao seu bem-estar físico, social e mental”. E, igualmente, que a “escola deve providenciar informações rigorosas relacionadas com a prote[c]ção da saúde e a prevenção do risco, nomeadamente na área da sexualidade, da violência, do comportamento alimentar, do consumo de substâncias, do sedentarismo e dos acidentes em contexto escolar e doméstico”. Cremos que, também nesta matéria, ninguém de bom senso se poderá opor a estes desideratos.
Hoje, não podemos ter dúvidas da importância destas matérias. Por isso, seja na disciplina de Ciências Naturais seja na disciplina de Biologia, é preciso falar sobre a sexualidade. Contudo, podemos admitir que há muitos pais e mães que não querem falar destas matérias com os filhos. Porque não sabem ou porque não querem. E daí a redobrada importância desta disciplina de Educação para a Cidadania, que deve ser obrigatoriamente frequentada por todos. Confiemos também nos professores desta disciplina, que saberão esclarecer devidamente os seus alunos e alunas sobre o valor da diferença e da tolerância, seja nas aulas de História ou nas de Filosofia ou, especialmente, nas de Cidadania.
Agitar a bandeirinha da ideologia que tais matérias supostamente comportam é um falso problema! Nada é neutro em educação. Toda a educação, há que assumir isso, é ideológica. Não dar hoje aos nossos jovens (rapazes e raparigas) noções básicas sobre estas e outras matérias, nomeadamente a questão da política, em si mesmo, esclarecendo ideias essenciais do funcionamento dos sistemas e das organizações políticas, nem explicar quando e por que motivo votamos, é uma falha grave.
Haverá sempre riscos das amarras aos tais projectos que podem ser mais ou menos ideológicos. Mas é, certamente, preferível termos uma escola ou um corpo docente que fale destes temas, apesar do risco que isso possa comportar. Não falar destes temas, por mais polémicos que sejam, é contribuir para o crescimento de jovens indiferentes às questões centrais da cidadania, fazer deles verdadeiros alienados, incapazes de sentido crítico, além de contribuir para que sejam, cada vez mais, presas fáceis de toda a propaganda falsa e perigosa, com visível aumento de adeptos.
O leitor ou leitora conhece os dois documentos mencionados e que estão ao alcance dum clique, no âmbito deste mesmo artigo? Não conhece? Então faça o favor de procurar. E, já agora, se tiver alguém que os faça relembrar ou chegar ao governo e a todos aqueles que são críticos nesta matéria, não hesite! Olhe que é uma boa e esclarecedora leitura. E convém recordar sempre que, por vezes, a ignorância é muito atrevida.
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Nota da Redação:
Este artigo é uma versão mais alargada de um artigo de opinião com igual título e que já foi publicado no Jornal Mirante, de Miranda do Corvo, em Novembro de 2024.
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07/11/2024