Com o 28 de setembro de 1974, terminou o projeto pessoal de Spínola

General António de Spínola (arquivos.rtp.pt)

manifestação no Porto, em 5 de maio de 1982.
(Créditos fotográficos: Henrique Matos – wikipedia.org)
“O 28 de setembro foi a primeira tentativa de vulto para conter a revolução abrilina e a democratização”, quem o refere é o investigador Francisco Bairrão Ruivo num trabalho publicado pela Comissão das Comemorações do 50.º Aniversário do 25 de Abril, sob o título “28 de setembro de 1974”.
Acompanhando o minucioso trabalho de investigação de Francisco Bairrão Ruivo, especialista atento ao processo revolucionário de 1974-1975 e às questões relacionadas com a representação, com a memória e com os movimentos sociais, recordamos que o 28 de setembro se constituiu “como mais uma investida do Presidente da República”, general António Sebastião Ribeiro de Spínola, “para tomar o poder, conjugando uma manifestação de rua com movimentações militares e a conspiração palaciana” para “a demissão do primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, a dissolução da Comissão Coordenadora (CC) do Movimento das Forças Armadas (MFA), a declaração de estado de sítio e o reforço dos poderes presidenciais”.
Logo na noite de 25 de abril, Spínola tentou condicionar a dinâmica revolucionária dos “capitães de abril”, procurando que regressassem aos quartéis e liderando ele o poder que “herdara” de Marcelo Caetano. Não o conseguindo, levou os capitães a tolerar-lhe a Presidência da Junta de Salvação Nacional (JSN) e a Presidência da República, que a CC do MFA queria para o general Francisco da Costa Gomes, que ficou chefe do Estado-Maior Geral das Forças Armadas (EMGFA).

(museu.presidencia.pt)
Em “crescente isolamento”, ante “o avanço da descolonização” e o “reconhecimento das independências, o poder do MFA e dos partidos de esquerda, a vaga de ações e de lutas dos movimentos sociais” e o que, como regista Francisco Bairrão Ruivo, “se constituía como um processo revolucionário”, António de Spínola e os setores afetos organizam uma manifestação da alegada “maioria silenciosa”, de “apoio ao Presidente da República que legitimasse o reforço dos poderes presidenciais e a declaração de estado de sítio”. Era, como sublinha o mesmo investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, uma “ação global, com ramificações em Angola e em Moçambique, passível de degenerar em violência” e até em golpe de Estado. O objetivo era “a contenção do processo revolucionário”, pela viragem à direita e pelo recuo das liberdades, bem como pelo controlo da descolonização.
Logo na noite de 25 de abril, Spínola tentou condicionar a dinâmica revolucionária dos “capitães de abril”, procurando que regressassem aos quartéis e liderando ele o poder que “herdara” de Marcelo Caetano
A democratização “preconizada por Spínola, assente na limitação de direitos e de liberdades”, era descrita como “democracia musculada”, “marcelismo sem Marcelo” ou “presidencialismo militar”. Enfim, a negação do que movimentos sociais e o MFA preconizavam.

Como constata o investigador Francisco Bairrão Ruivo, António de Spínola advogava uma “via federal-presidencialista” sob controlo político da grande burguesia, assente em “táticas golpistas” e em “laivos de nacionalismo militar”, com uma centralidade inequívoca o neocolonialismo de tipo federalista. Porém, incapaz “de evitar ou de retardar a descolonização”, Spínola assinou, constrangido, a Lei n.º 7/74, de 27 de julho, que reconhecia o direito à independência das colónias. Não obstante, não desistiu de fomentar organizações africanas, de fazer visitas aos quartéis militares e de preconizar soluções assentes na autodeterminação e nos referendos. Assim, ao longo de cinco meses, tentou, de formas diferentes, garantir, para si, o controlo do poder político-militar, reforçando os seus poderes e aniquilar a CC do MFA.
“O braço-de-ferro nos dias imediatos ao golpe de 25 de abril”, os “embates de 8 e 13 de junho na Manutenção Militar”, a “crise Palma Carlos”, a “crise de agosto” e os apelos à “maioria silenciosa” foram os cinco momentos de pressão de Spínola sobre o MFA.

Para o referido investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova, estes assaltos ao poder são complementados por discursos catastróficos da “teoria da terra queimada”, em que Spínola prepara o terreno para o apelo à “maioria silenciosa”.
A crise Palma Carlos, que era o primeiro-ministro (PM) do I Governo Provisório, suscitada pela situação económica caótica descrita por Vasco Vieira de Almeida, ignorando as consequências de qualquer processo revolucionário, consistia numa alteração ao programa do MFA, sugerida por Sá Carneiro: legitimar Spínola como Presidente da República por eleição popular, com base numa lei constitucional “ad hoc”, constituir um governo de iniciativa presidencial, com ministros escolhidos pelo PM e não pelo PR, que preparava as eleições para a Assembleia Constituinte e, depois, para o Parlamento. A CC do MFA não aceitou a alteração, Palma Carlos demitiu-se e Vasco Gonçalves assume-se, nomeado por Spínola, como PM do II Governo Provisório.
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O projeto spinolista esbarra num dos profundos fenómenos abrilinos: a explosão revolucionária marcada por mobilizações coletivas, pelas práticas de democracia direta e pela militância de base. Em maio de 1974, explode a onda de greves, de ocupações e de paralisações de empresas, com assembleias e manifestações reivindicativas dos direitos e liberdades fundamentais e do fim da guerra colonial.

“Em Setúbal, em Lisboa ou no Porto, o movimento de moradores auto-organiza-se em comissões e arranca o movimento de ocupações de casas. Nos bairros urbanos e nos campos do Alentejo, empresas, escolas e universidades, órgãos locais e centrais do Estado e até nas Forças Armadas, estabelecem-se formas de organização popular e de luta reivindicativa”, observa Francisco Bairrão Ruivo.
Entre abril e setembro, a derrota spinolista é determinada pela “dinâmica revolucionária”. Em torno do general forma-se “um campo político conservador, mas heterogéneo”, com “várias tendências de direita e de extrema-direita”: monárquicos, católicos, aristocratas, gente da elite económica. Como entende Francisco Bairrão Ruivo, define-se “mais pela oposição ao processo revolucionário, de democratização e de descolonização, do que pela afinidade ideológica”. “A questão africana é central”, nomeadamente, a manutenção de uma “ligação entre Portugal e as (ainda) colónias”. Nesse contexto, o aludido investigador considera que embora “defendendo vias integristas ou independências brancas, muitos resignam-se ao federalismo spinolista”.
O projeto spinolista esbarra num dos profundos fenómenos abrilinos: a explosão revolucionária marcada por mobilizações coletivas, pelas práticas de democracia direta e pela militância de base


Federalista Português, n.º 14 de agosto de
1974. (50anos25abril.pt)
“A explosão de partidos no pós-25 de Abril passará também pelo centro-direita e pela extrema-direita”, alguns com ligações a Spínola. Assim, Bairrão Ruivo anota que, nos primeiros dias de maio, “surgem o Partido Trabalhista Democrático Português (PTDP), apoiante da manifestação da “maioria silenciosa” e com ligações a grupos colonialistas em África, e o Partido Cristão Social-Democrata (PCSD), que se fundirá com o Partido Democrático Popular Cristão (PDPC)”. Na sua pesquisa cronológica, o investigador lembra ainda que, a 4 de maio, surge o Movimento Federalista Português (MFP), depois, denominado Partido do Progresso (PP); e, dias depois, o Movimento Popular Português (MPP). No dia 10, surgia o Partido da Democracia Cristã (PDC). Dias depois, foi a vez do Partido Popular Monárquico (PPM). E, a 28 de maio, é fundado Partido Liberal (PL), o grande coordenador da manifestação.
E as organizações político-partidárias vão aparecendo neste período conturbado e cheio de dinamismo social. Por conseguinte, Bairrão Ruivo prossegue o seu registo cronológico: no dia 15 de junho, surge o Partido Social-Democrata Português (PSDP) e, a 24, o Partido Nacionalista Português (PNP), extinto dias antes do 28 de Setembro. Sob o signo do antimarxismo, PL, PTDP e PP constituem, a 27 de agosto, a Frente Democrática Unida (FDU). PDC, Partido Cristão Social (PCS), Partido Social-Democrático Independente (PSDI) e elementos do PSDP formam a Aliança dos Portugueses para o Progresso Social, frente de direita de apoio ao Presidente da República, apesar das reservas que António de Spínola lhes suscitava.

A 10 de junho, Spínola é eleito presidente honorário do PTDP e realizam-se, em Lisboa e no Porto, “manifestações das direitas em defesa do federalismo”. E, na sequência da “crise Palma Carlos”, MFP, PTDP, PL e MPP sustentam que “a grande maioria do País tem sido silenciada”, e são recebidos por Spínola, a 10 de julho.
Jornais da imprensa regional, como Bandarra, Economia e Finanças, Tribuna Popular ou Tempo Novo “serão determinantes na preparação da manifestação e no ataque” ao MFA, ao governo, aos partidos de esquerda e ao processo de descolonização, como repara Francisco Bairrão Ruivo, da Universidade Nova de Lisboa, enquanto autor do extenso trabalho publicado na página eletrónica da Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril.

do 28 de Setembro”, Lisboa, 1975.
(50anos25abril.pt)
O Relatório sobre o 28 de Setembro situa o arranque de uma ofensiva orquestrada pela extrema-direita, no encontro de 10 de julho de Spínola com delegações do MFP, do PTDP, do PL e do MPP, e o início das movimentações tendentes à manifestação no fim do mês.
A organização arranca no início de setembro. “Spínola dirá que foi informado por Galvão de Melo da preparação da manifestação de apoio ao Presidente”, escreve o investigador Francisco Bairrão Ruivo. Porém, Francisco van Uden diz que foi Spínola, inspirado no ex-presidente da República francesa Charles de Gaulle, quem procurou os organizadores da manifestação, informando-os da necessidade de manifestação pública de apoio popular para combater a infiltração comunista no MFA. Deste encontro surgiu a comissão organizadora da manifestação presidida por Fernando Cavaleiro.

A 9 de setembro, elementos do PP, do PDC e do PL reúnem para preparar a manifestação. No dia 7, fora assinado o acordo de Lusaca que provocou “o levantamento violento da comunidade branca em Lourenço Marques”. Na cerimónia de reconhecimento da independência da Guiné, a 10 de setembro, Spínola, entre ataques à descolonização, apela à “maioria silenciosa”. E, como explicita Francisco Bairrão Ruivo, “a 14 de setembro, Spínola e Mobutu encontram-se para discutir o futuro de Angola”.

No dia 15, a Associação Livre de Agricultores (ALA) convoca uma manifestação junto do Palácio de Belém, para o dia 29, de modo a coincidir com as movimentações da “maioria silenciosa”.

“Depois de, a 28 de agosto, elementos do MPP terem sido detidos por colar[em] cartazes da manifestação, na madrugada de 19 de setembro, são, de novo, afixados em Lisboa cartazes” que são “rasgados por militantes do Partido Comunista Português (PCP) e do Movimento Democrático Português (MDP), que entram em confronto com os apoiantes da manifestação”, acrescenta o historiador, também membro do grupo de investigação História Política Comparada da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.
“O financiamento da manifestação terá sido organizado por Kaúlza de Arriaga e por Fernando Cavaleiro e suportado pelo Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, com quem elementos do PL e do PP” tinham relação, menciona Francisco Bairrão Ruivo, admitindo que as verbas são aplicadas em propaganda, em cartazes, em aluguer de avionetas para a distribuição de panfletos, em fretes de táxis aéreos e em “aluguer de cerca de mil camionetas no Norte do país destinadas ao transporte gratuito de pessoas para Lisboa”.

Por sua vez, como noticia o Diário de Lisboa, em 23 de setembro de 1974, publicação que também serviu de fonte ao historiador Bairrão Ruivo, refletindo as imbricações da “maioria silenciosa” com a frente africana e as manobras tendentes à descolonização, Spínola “chama, no dia 20, a Lisboa o governador-geral de Angola, Rosa Coutinho, e assume diretamente a descolonização de Angola e todas as negociações”.
“O PCP alerta para a manifestação de reacionários e fascistas encapotados” para “destruir o processo de democratização”. Então, como confirma o historiador Francisco Bairrão Ruivo, o PCP denuncia o apoio da “alta finança” e “apela à vigilância popular e à unidade e ação de todos os partidos”. Por seu turno, o MDP fala na “minoria tenebrosa” composta por ex-elementos da PIDE/DGS, ex-legionários, partidos fascistas e grandes capitalistas. Também o Partido Socialista (PS) denuncia as manobras de grupos fascistas. “Já o Centro Democrático Social (CDS) desmentia qualquer ligação ao extinto PNP”, escreve o investigador, o qual tem desenvolvido trabalhos ensaísticos, como já dissemos, em áreas como a do processo revolucionário português (1974-1975), o Estado Novo, a República, o colonialismo, a descolonização e o pós-colonialismo.
Na manhã do dia 27, em reunião do Conselho de Ministros, em Belém, António de Spínola tenta a declaração do estado de sítio, como recorda o investigador Bairrão Ruivo. A resposta da CC do MFA é delineada nessa manhã, em reunião com Costa Gomes, com ministros militares do MFA, com o comandante-adjunto do Comando Operacional do Continente (COPCON), Otelo Saraiva de Carvalho, e com membros da 2.ª Divisão do EMGFA que apresentam uma lista de detenções. Os oficiais da CC do MFA “contactam as principais unidades e a contagem de espingardas revelava-se favorável”. “Segue-se a reunião da JSN em que Spínola propõe, sem sucesso, a demissão de Vasco Gonçalves”, especifica o historiador. No fim da tarde, em reunião do Conselho de Ministros, António de Spínola insiste na demissão do PM. O termo da reunião “coincide com o início das prisões decididas pelo COPCON” e “com o arranque da constituição de barricadas nos acessos a Lisboa, por sindicatos, por comissões de trabalhadores, por moradores e por partidos de esquerda”, complementa o autor do texto que temos vindo a seguir.

Em nova reunião da JSN, em Belém, “com a presença de Vasco Gonçalves, Costa Gomes e [d]os ministros da Comunicação Social e da Defesa, Sanches Osório e Firmino Miguel”, os spinolistas “exigem a demissão” do PM. Noutra sala do Palácio de Belém, o ministro da Comunicação Social é incumbido, por Spínola, “de redigir um comunicado, sugerindo a necessidade da declaração de estado de sítio, rejeitado por Vasco Gonçalves e [por] Costa Gomes”. Em novo comunicado, às três horas da madrugada de 28 – como situa cronologicamente Francisco Bairrão Ruivo –, “redigido por Vasco Gonçalves e aprovado por Spínola, o governo apela ao levantamento das barricadas”, permitindo, assim, “a normal circulação e a passagem dos participantes na manifestação, que tinha condições para decorrer pacificamente”.
O fim do dia 27 e o dealbar de dia 28 são de “tensão e de receio[s]” de que a situação escalasse “para algo próximo da guerra civil”. Com Otelo, a quem Spínola retira o comando do COPCON, e Vasco Gonçalves detidos em Belém, a CC do MFA reage. Vasco Lourenço, pensando na rede conspirativa do 25 de Abril, “contacta os capitães de várias unidades e diz-lhes para, se for preciso, porem o ‘25 de Abril sobre rodas’, prenderem os comandantes e assumirem o comando das unidades”, que – como afirma Bairrão Ruivo – estavam quase todas com a CC do MFA, e não com Spínola, que permite que Vasco Gonçalves e Otelo abandonem Belém.

Ephemera – spn.pt)
A CC do MFA, vendo que as coisas correm pelo lado do MFA, exige a demissão dos elementos spinolistas da JSN, que fica reduzida a Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Rosa Coutinho e Spínola. Este, não concordando, “pede a Freitas do Amaral que redija uma declaração de estado de sítio” e insiste na demissão do PM, sem sucesso. Com efeito, às 13 horas, “um comunicado da Presidência da República declara inconveniente a manifestação”. E, depois, outro comunicado, mas vindo da 5.ª Divisão do EMGFA, proíbe-a taxativamente.
Na manhã de 29, JSN e CC do MFA “reúnem e debatem a possibilidade de institucionalização do MFA” e António de Spínola tenta, mais uma vez, declarar o estado de sítio, sem sucesso.
No início da tarde, retomada a reunião, a CC do MFA apresenta as propostas da plataforma de entendimento. “Confirma a demissão dos três generais da JSN referidos” e encarrega Spínola e Costa Gomes de “estudar a institucionalização do MFA”. Como nos conta ainda Bairrão Ruivo, no texto que temos estado a acompanhar na página eletrónica da Comissão Comemorativas 50 Anos 25 de Abril, no fim do dia 29, António de Spínola comunica ao PM, “na presença de Costa Gomes”, a intenção de renunciar ao cargo de Presidente da República.

Finalmente, em reunião do Conselho de Estado, na manhã de 30 de setembro, António de Spínola, em dramática intervenção transmitida pela RTP, “comunica ao país a renúncia à Presidência da República”.

Ficou, assim, tumulado o projeto pessoal de Spínola e avançou, embora com alguns solavancos, o processo de descolonização (com lutas internas), de democratização (com eleições para a Assembleia Constituinte, para o Parlamento, para a Presidência da República, para as autarquias locais e para as regiões autónomas) e de desenvolvimento (ainda não satisfatório, mas real).
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Se calhar, a democracia representativa quererá que se festeje o 28 de setembro.
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03/10/2024