De Gil Vicente aos Gato Fedorento: uma tradição de rir para não chorar
Uma frase que guardo dos tempos de estudante é “castigat ridendo mores”, ou seja, que “a rir se castigam os costumes”. Se calhar, já nem faz parte do currículo, mas este era o tema central ao estudar o “Auto da Barca do Inferno”. Nesta peça de 1517, Gil Vicente critica, com uma fina sátira, diferentes partes da sua sociedade, de fidalgos a cavaleiros e alcoviteiras. Sem nomear ninguém, mistura sarcasmo, humor e paródia para criticar alguns dos comportamentos negativos da época. Uma sátira como esta deixa os alvos numa posição difícil. Ou ignoram e deixam passar a mensagem, ou declaram a ofensa, enfiando o barrete e assumindo o ridículo. Desde cedo, utilizar a comédia para dizer verdades e ilustrar hipocrisias foi um dos talentos dos Portugueses.
Se Gil Vicente foi o pai da sátira em Portugal, teve no teatro de revista um descendente digno. Inspirada na “revue” francesa, a “revista” é um género teatral intrigante que abdica de histórias e de narrativas tradicionais, a favor de diferentes rábulas que, com humor, comentam e criticam aspetos da sociedade e do poder. A primeira revista à portuguesa entrou em cena no ano de 1851, com um título bastante básico: “Lisboa em 1850”. Uma “revista” passa a sociedade em revista, onde todos sabem do que se fala, sem ter de mencionar nomes. E, talvez por isso, a “revista” assumiria um papel importante como escape social durante a ditadura do Estado Novo. Contra o lápis azul da censura e os bufos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), o teatro de revista foi um serviço público que entretinha as massas, enquanto passava críticas que, pelo menos, permitiam ao povo rir-se de um regime autoritário.
É uma situação curiosa: quanto mais sobe a pressão da censura, mais refinada fica a sátira. Esta é uma questão do sobrevivência: quem passasse da linha acabaria na prisão ou pior. Para sua segurança, Gil Vicente escondeu-se atrás de Deus, a “revista” atrás de situações do dia a dia. Mas a ideia foi sempre a mesma: criticar quem segura o poder e – à sua maneira – tentar mudar como funcionam as coisas. O inverso, infelizmente, também acontece.
Quanto mais liberdade há, menos interessante se tornam os temas e a execução deste género teatral. Afinal, se todos podemos criticar tudo abertamente, a subtileza de uma rábula acaba por não ser necessária. Por isso, admito que a “revista”, que levo na minha cabeça e com a qual cresci, sempre me pareceu parva ou, utilizando um vocabulário mais refinado, “kitsch”. Isto é, a “revista” moderna encheu-se de estereótipos de mau gosto e uma execução de pobre qualidade. Algures, pelo caminho, a sátira foi-se perdendo e os elementos populistas ganharam mais destaque.
Isto é uma pena porque, mesmo no mundo pós-25 de Abril, é importante criticar o que não funciona na sociedade, de maneira a que o grande público se possa conectar. É um paradoxo: precisamos de nos rir para levar as coisas a sério – e para evitar chorar. A tradição não está perdida: um dos primeiros “sketches” dos Gato Fedorento, intitulado “Ó Shôr Doutor”, parodiava um frente a frente entre políticos e a repetição inútil de títulos que os Portugueses tanto gostam – poucos países no Mundo terão tantos doutores e engenheiros como Portugal ou, pelo menos, de igual grandeza no título. No “Programa da Maria”, uma das rábulas punha trabalhadores de construção civil brancos a tentar aproveitar-se do colega negro que, em seguida, passava o trabalho ao companheiro do Leste da Europa. Como se diz tanto com tão pouco. E, claro, acho que existe um buraco gigante na televisão portuguesa desde que o programa “Contra Informação” saiu do ar. O mundo do futebol e da política precisam de um espelho assim.
A comédia e a sátira parecem encontrar força nas suas limitações, tornando-se mais sofisticadas perante os limites impostos por elementos externos. Sem limitações, transformam-se em paródias levadas pouco a sério. O problema é que a censura nem sempre aparece como um lápis azul. Em liberdade, toma formas menos óbvias, que contribuem para uma sociedade que poderia ser bem informada, mas que se mostra pouco interessada. No meio do ruído, fica complicado ouvir as coisas importantes. Por isso, não seria má ideia recuperar tradições e, com desdém, voltar castigar os costumes com o poder de uma boa gargalhada.
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11/07/2024