Distopias de primeiro mundo

 Distopias de primeiro mundo

O asilo de migrantes Bibby Stockholm atracado no porto de Portland, em Dorset. (Créditos fotográficos. Max Willcock / Bournemouth News / Shutterstock – bigissue.com)

É uma coisa que esperamos ver num filme. Um edifício de três andares que flutua na água, com 220 quartos e espaço para mais de quinhentas pessoas, um caixote gigante com centenas de janelas. São mais de dez toneladas que fazem lembrar uma prisão. Falo da Bibby Stockholm, uma barcaça sem motor de construção sueca e bandeira de Barbados, que ganhou um protagonismo no Reino Unido pela sua peculiar utilização.

Navio ou barcaça sem motor Bibby Stockholm, na costa de Portland. (birmingham.ac.uk)

A história da Bibby Stockholm está cheia de usos duvidosos: entre 1994 e 1998, foi utilizada para alojar pessoas sem abrigo na Alemanha e, em 2005, o governo holandês utilizou-a para colocar pessoas que entraram no país à procura de asilo. Após anos a apoiar projetos de construção, o governo britânico decidiu trazê-la, em 2023, para o porto de Portland, em Dorset. A sua função? Ser, de novo, um centro de acolhimento para pessoas que entraram no país ilegalmente, em busca de asilo. Isto é, gente que arriscou tudo para deixar os seus países e acabou sem sequer ter os pés em terra firme.

Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido de
2019 a 2022. (en.wikipedia.org)

A imigração é um tema quente no Reino Unido e foi um dos catalisadores da saída do país da União Europeia. “Retomar o controlo”, em particular das fronteiras, foi um dos lemas do movimento e, como tantas outras promessas, o Brexit também não cumpriu esta. Até julho de 2024, mais de 10 mil pessoas terão entrado ilegalmente no país em pequenos barcos ou lanchas, números máximos para a metade de um ano. O que fazer perante esta maré de gente?

Demonstrações de força, como esconder estas pessoas em sítios como a Bibby Stockholm. Longe da vista e longe do coração. Contudo, em qualquer situação, as pessoas devem ser tratadas com dignidade – ou criam-se situações extremas, tal como aconteceu em dezembro de 2023, quando um dos refugiados que residia na Bibby Stockholm, natural da Albânia, apareceu morto na barcaça. A morte foi classificada como suicídio, mas a família continua a pedir uma investigação sobre o caso. Coisas assim não se podem varrer para debaixo do tapete. Então, quando não se pode esconder um problema, qual é a outra opção? Exportá-lo.

Rishi Sunak é um político britânico que exerceu o
cargo de primeiro-ministro do Reino Unido, de 2022 a
2024. (en.wikipedia.org)

Em abril de 2022, o governo Conservador, então liderado por Boris Johnson, anunciava uma maneira inovadora para dissuadir a imigração ilegal. Quem entrasse no país sem ter o direito a tal, poderia ser repatriado – independentemente do país de origem – para o Ruanda. Outra coisa de filme, já sei. A parceria com o Ruanda foi assinada em 2022, mas foi alvo de fortes críticas por parte de associações humanitárias e declarado ilegal por vários tribunais, dentro e fora do Reino Unido. Isso não impediu o governo britânico, já liderado por Richi Sunak, de tentar concretizar o plano e, depois de alguns movimentos legais e da assinatura de um novo tratado, tornou a medida oficial em 2024 e até anunciou a saída dos primeiros voos de repatriamento. Mesmo assim, ninguém abandonou o país contra a sua vontade – cada requerente recebeu três mil libras para sair do país por opção própria.

As pessoas fogem de situações horríveis na esperança de encontrar uma vida melhor. O que não esperam é serem reduzidas a meros objetos que se podem enviar para um qualquer país aleatório, para deixarem de ser um problema. São, pois, menos seres humanos e mais tratados como coisas. Não defendo a imigração ilegal – cada país está no direito de permitir ou não a entrada de pessoas. O problema é que alguns interesses políticos tornam uma minoria ilegal em tema dominante, criando uma realidade feita de tensões raciais, que afetam todos os que parecem diferentes. O que de pior pode acontecer?

Lord Street em Southport, Merseyside, na Inglaterra. (pt.wikipedia.org)

29 de julho, 2024. Southport, uma pequena cidade de 94 mil habitantes no Reino Unido, entre Liverpool e Blackpool, foi palco de um crime horrível. Três crianças mortas por esfaqueamento, mais oito feridas, com dois adultos em condição grave. A situação já é terrível e as redes sociais não ajudam, ao espalharem a mensagem de que o atacante foi um imigrante ilegal muçulmano. A extrema-direita começa a mobilizar-se por todo o país. Manifestações de “solidariedade” rapidamente se convertem em comícios anti-imigração e racistas.

Em Southport, 50 polícias foram feridos a tentar conter uma das manifestações que tinha como alvo uma mesquita. O rastilho depressa se espalha ao resto do país: Londres, Manchester, Hartlepool, Aldershot, Liverpool, Blackpool, Hull, Stoke-on-Trent, Leeds, Nottingham, Bristol e até Belfast. Os alvos são locais onde possam estar pessoas que se encontram no país à procura de asilo ou, por extensão, qualquer indivíduo que venha de outra cultura.

(Créditos fotográficos: Hollie Adams – Reuters – rtp.pt)

O ódio acumulado, incitado e permissível cria uma panela de pressão que acaba por fazer uma sociedade explodir – e tudo começa com o tratamento de algumas pessoas como inferiores. O suspeito dos esfaqueamentos, entretanto preso pela polícia, é um rapaz de 17 anos, cidadão britânico, nascido em Cardiff, no País de Gales, filho de imigrantes do Ruanda e criado no seio de uma família cristã. No total, mais de mil pessoas foram presas durante estes motins.

Existem alguns sinais de esperança. O governo Trabalhista – que tomou posse em julho – anunciou o fim da Bibby Stockholm e do programa de repatriação para o Ruanda. Já ninguém dormirá na barcaça e ninguém será forçado a ir para um país aleatório (ou de circunstâncias imprevisíveis) à procura de asilo. Contudo, o legado do plano do Ruanda continuará a fazer-se sentir nos cofres do país. Estima-se que os quatro voluntários enviados custaram 700 milhões de libras – e o governo anterior planeava gastar até 10 mil milhões de libras com o projeto. Com tanto dinheiro disponível, provavelmente, existirão soluções mais humanas e eficazes para este problema.

Bandeiras do Reino Unido enfeitam ruas de Londres. Foto de 27 de abril de 2023. (Créditos fotográficos: AP – Alberto Pezzali – rfi.fr)

A imigração ilegal é, obviamente, ilegítima e cada país tem o direito de proteger as suas fronteiras – por muito antiquado que seja o conceito. Contudo, isso não significa que se possa ignorar o sofrimento por detrás destes números. Desumanizar pessoas porque vêm de outro país é abrir o caminho ao racismo e à xenofobia. Além disso, cria políticos que tentam responsabilizar a imigração todos os problemas – e esconder realidades mais negras. Problemas internos que se ignoram ao escolher alvos que nem se podem defender, porque são inferiores, mas que criam uma situação que, tarde ou cedo, acaba mal. Se removermos este filtro de ódio, podemos começar a discutir soluções com humanidade e os problemas de verdade, sem que ninguém viva numa distopia de primeiro mundo.

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05/09/2024

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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