É necessário garantir que não vão faltar professores nas escolas
Agrava-se, nas escolas públicas, o problema da falta de professores, que resulta, basicamente, da desvalorização da profissão docente, a que se juntam fatores circunstanciais.
A valorização da docência postula a grande aposta na formação inicial e na formação contínua. A formação inicial merece forte investimento na ciência, pois não se pode gerir a aprendizagem, sem domínio científico do conhecimento, como não resulta ensinar, sem a conveniente preparação didática e pedagógica. E pode ter-se pecado pela insuficiente aposta na componente científica, tecnológica e artística, e pela abertura a candidatos que não se sentiam capazes de frequentar com êxito outro tipo de formação académica, o que redundaria numa prestação didática e pedagógica pouco sustentada.
A ideia de que o aluno é o centro da aprendizagem, sendo o professor um animador da aprendizagem – que seria ótima, numa sociedade de crianças e jovens ideais – esvazia a função docente no quadro da sociedade que temos. O puericentrismo converteu-se em “matetolatria” (os/as meninos/as são endeusados/as como seres inocentes e totalmente bons) e o professor passou de mestre a servo de burocracias, de alunos e de pais.
Os programas das diversas disciplinas, regra geral, são extensos, complexos e alguns servidos por exígua carga horária semanal; e são elaborados para o aluno médio, se não ideal. Ora, nem um nem outro destes tipos de aluno existe numa sociedade pobre e desigual, sobretudo no universo dos frequentadores da escola pública.
Daqui resulta que tudo, no professor, pode ser transgressão, ilícito ou crime (falar alto, mostrar cara de caso, “ameaçar!”, disciplinar, punir, etc.), ao passo que o aluno pode acusar, difamar, transgredir, agredir que nada ou pouco lhe acontece. E há quem sustente que se deve ensinar aos alunos aquilo de que gostam, o que lhes interessa.
A formação contínua é encarada como necessidade para uma decente avaliação de desempenho docente (ADD), uma invenção de cariz neoliberal, seletiva; muitos docentes sujeitam-se a ações de formação a expensas suas; e algumas ações de formação necessárias nunca estão disponíveis com suficiência. Ora, do meu ponto de vista, a formação contínua deveria ser disponibilizada consoante as necessidades dos docentes e abrangê-los obrigatoriamente a todos os que delas necessitassem, sem custos acrescidos: alteração de programas (a nível de perspetivas e ou de conteúdos), introdução de novas tecnologias, assunção de novos métodos e técnicas de ensino, novas opções pedagógicas, inovações científicas e técnicas, mudanças sociais, novas relações económicas e novos contornos políticos (nacionais e internacionais).
A desvalorização do estatuto social do professor é acompanhada pela desvalorização da autoridade do Estado: deputados, governantes, polícias, militares, trabalhadores da administração pública. Porém, a autoridade do professor ganhou contornos insustentáveis. Quem não se lembra de governante a dizer que o diretor de escola podia não ser professor? Quem não se lembra da governante que promoveu a inclusão do ensino profissional nas escolas públicas e o alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos, bastando-lhe os professores que estavam no sistema, os quais assegurariam a permanência dos alunos a tempo inteiro na escola? Quem não se lembra do governante que escreveu que qualquer professor pode ter de lecionar qualquer disciplina para a qual tenha habilitação científica ou técnica? Quer dizer que eu, profissionalizado só em Português, Latim e Grego, teria de lecionar História e Geografia de Portugal, Português do 2.º Ciclo, todas as disciplinas do 1.º Ciclo e Educação Moral e Religiosa Católica. Porém, nunca me encarregaram da Educação para Cidadania, nem da Área de Integração (no ensino profissional).
A isto acresce que a valorização salarial não acompanhou o custo de vida e a necessidade de deslocação dos docentes (encarecimento do transporte e da habitação) para os lugares onde é mais numerosa a população escolar. E, graças aos mecanismos de progressão na carreira, a maior parte dos docentes não chega aos escalões superiores e muitos não passam do meio da carreira.
Tais circunstâncias levaram à rarefação da frequência da formação inicial de professores. E os poucos formados tinham de se sujeitar à prova de avaliação de conhecimentos e de competências (PACC), antes do ingresso na carreira. Além disso, um governo de não saudosa memória promoveu a rescisão de contrato, por mútuo acordo, a milhares de professores; e, porque a profissão docente não foi considerada como de desgaste rápido, muitos recorrem a baixas médicas, por doença, por esgotamento, por cansaço e até por distribuição de serviço desajustada da parte de algumas direções. Não obstante, a idade não perdoa e o ritmo de aposentações deixa a escola marcada, além do envelhecimento e do cansaço, pelo vazio de docentes com habilitação profissional para a docência ou de docentes com experiência suficiente.
A dificuldade em substituir professores ao longo do ano letivo – com milhares de alunos sem aulas, por períodos mais ou menos longos – ou a necessidade de recorrer a profissionais sem formação específica para lecionar são alguns sinais já visíveis de um problema grave, reconhecido pelos partidos. Há docentes que não concorrem a vagas do quadro e contratados que não aceitam horários: uns, por não terem como pagar alojamento em grandes centros em que as rendas são muito altas, bem como os quartos a alugar; outros, por a carga horária semanal disponível não dar para cobrir as despesas habituais do docente.
São circunstâncias relativamente fáceis de resolver: o Ministério da Educação (ME), com base no endereço do boletim de concurso atribuiria subsídio para renda (e o governo implementaria uma política de controlo de rendas); no caso, de horário incompleto (só pode haver um no grupo), pagaria ao docente pelo horário completo, com a obrigação de disponibilidade para outras atividades compatíveis que lhe viessem a ser atribuídas; e, se o horário fosse de docente com redução da componente letiva, que não esteja ao serviço, por baixa médica ou por ocupação de cargo público ou equiparado, o docente substituto seria pago por horário completo, com obrigação análoga ao do caso anterior. Como se vê, esta situação é de fácil ultrapassagem.
Se fosse o único tema, para as eleições, o problema da falta de professores e da atratividade da carreira docente, não haveria muito a discutir, dado o consenso entre os partidos, sobre o diagnóstico e sobre as medidas a tomar. Nalguns casos, só diferem nos pormenores.
Por exemplo, a devolução integral do tempo de serviço, que esteve, não há muito, quase na origem de uma crise política, é defendida por todos os partidos, incluindo o Partido Socialista (PS), que não a viabilizou. Agora, o que divide os partidos é o tempo que demorará a reposição. Já a eliminação de quotas na ADD e de limites de vagas para a progressão, outra das grandes reivindicações dos professores, não consta do programa eleitoral dos maiores partidos, ainda que seja defendida pelo Bloco de Esquerda (BE), pelo Partido Comunista Português (PCP), pelo Livre, pelo partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e pelo Chega. Porém, a contagem do tempo de serviço congelado (seis anos, seis meses e 23 dias) já é consensual e pode fazer diminuir os níveis de contestação e desmotivação de quem foi mais afetado, mas não resolve o problema da escassez de professores, já que não melhora as condições de quem ingressa na carreira.
Até 2030, é preciso recrutar uma média de 3500 professores ao ano, segundo um estudo pedido pelo ME a investigadores da Nova SBE. Desdobrando por anos letivos: as necessidades de novas contratações para o ensino previstas são: 3316, para 2025/2026; 3759, para 2026/2027; 3755, para 2027/2028; 3951, para 2028/2029; 3913, para 2029/2030; e 4107, para 2030/2031.
Todavia, segundo dados dos últimos anos, o número de diplomados em cursos que conferem habilitação para a docência ficou sempre aquém das necessidades. Com efeito, os diplomados em mestrados para a docência somam: 2540, em 2016/2017; 2439, em 2017/2018; 2349, em 2018/2019; 2494, em 2019/2020; 2327, em 2020/2021; e 2603, em 2021/2022 (neste aumentou).
Face a este desajuste, dizem os partidos que é preciso valorizar a carreira, dignificar, dar melhores condições, desburocratizar. São palavras que vêm repetindo nos programas eleitorais. Contudo, o problema da falta de professores, que é grave, agrava-se de ano para ano. E há cerca de três mil professores a lecionar sem habilitação profissional para a docência.
É conveniente revisitar o mecanismo da formação inicial de professores e, a par da formação para a docência nas instituições do ensino superior, voltar a considerar como via alternativa também a formação voltada para áreas científicas diversas, naquelas instituições, e complementá-la, depois, com a formação didático-pedagógica. A diversificação tem vantagens.
Carlinda Leite, professora jubilada da Universidade do Porto e coordenadora do grupo de trabalho criado pelo ME para apresentar propostas de revisão do diploma que regula as habilitações para a docência, tem alguma esperança, ao ver “propostas positivas nos programas de quase todos os partidos” para tornar a carreira mais atraente e para reduzir a precariedade, embora não baste “propor”. Na verdade, é preciso “concretizar”. E a académica pede ao futuro ministro da Educação que olhe para as propostas que vão nesse sentido e que ponha em prática as melhores.
Carlinda Leite dá o exemplo do programa do PAN, o último a ser apresentado, que elenca uma série de medidas em torno da “sustentabilidade”, que deviam ser mobilizadas pelos partidos da governação. E uma das medidas que a investigadora quer ver na prática é a melhoria dos salários de educadores e professores, pelo menos, no início da carreira. Com efeito, o vencimento bruto dos educadores e dos professores do ensino não superior, nos dois primeiros escalões, é baixo, apesar do aumento para 2024 (1.º escalão – 1657,53 euros; 2.º escalão – 1854,09 euros).
O PS promete “reduzir o hiato entre os índices remuneratórios da base da carreira docente e os índices mais altos”. A Aliança Democratiza (AD), liderada pelo Partido Social Democrata (PSD), dedica “um programa de emergência para atrair novos professores”, que prevê “rever o salário em início de carreira” e nos “restantes índices e escalões, no sentido de simplificar o sistema remuneratório” e “promover o regresso ao ensino dos professores que tenham saído da profissão, através de mecanismos de bonificação de reposicionamento da carreira”. O PCP e o Livre abordam a aposentação, defendendo – o primeiro –um regime específico para professores, que atenda às caraterísticas das suas atividades e o “desgaste que delas decorre”, e propondo – o segundo – que tenham direito a aposentar-se, com pensão por inteiro, aos 36 anos de serviço.
É também abordada, nos programas eleitorais, a dificuldade que tem levado a que se sinta a falta de professores em regiões como Lisboa e Algarve, mercê dos custos da habitação. Os apoios anunciados em 2023 são incipientes. Urge tomar mais medidas, sabendo-se que as regiões e escolas com mais dificuldades estão identificadas. Os partidos propõem a dedução de despesas de alojamento em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), juntamente com outras compensações e incentivos.
Sobre os mecanismos de contratação e recrutamento de professores, só a Iniciativa Liberal (IL) propõe alteração profunda no sistema “demasiado centralizado, focado em critérios muito limitados (nota do curso e anos de experiência) e muito demorado”. Assim, defende maior autonomia das escolas na escolha dos recursos humanos “que melhor se ajustam ao projeto educativo” de cada uma. Porém, o concurso centralizado no ME e o respeito pela lista nacional de graduação têm sido pedras basilares do recrutamento de professores, defendidas pelos sindicatos – e bem, do meu ponto de vista. Quando o ministro da Educação falou num sistema misto, com as escolas a escolherem até 30% dos seus professores, de acordo com critério próprios, a oposição foi imediata e a questão nem chegou a proposta.
Por fim, há que desburocratizar o ensino (despi-lo de regras, de relatórios, de grelhas e de fichas inúteis). Os professores ensinam e façam-no com autonomia profissional, científica e pedagógica. Equilibrem-se os programas das disciplinas e sejam servidos por adequada carga horária semanal.
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26/02/2024