É preciso defender a Língua Portuguesa!
Na sequência de quatro artigos já publicados no jornal sinalAberto, todos eles sobre temáticas diferenciadas, perguntei aos meus botões que tema deveria escolher para a edição de hoje. Tive alguma dificuldade, mas, de repente, depois de uma troca de impressões com um amigo, através dessa modernice chamada WhatsApp, fez-se luz no meu espírito. Esse meu amigo, a propósito de uma recente “calinada” dada por uma senhora ministra, quando se referia às dificuldades de controlar o fogo na ilha da Madeira1, defendia que não poderia ser ministro ou ministra quem não tivesse sido aprovado em prova adequada de língua materna!
O país inteiro teve oportunidade de ouvir esta senhora a invocar a “urologia” da ilha da Madeira como um factor agravante na dificuldade do combate às chamas. Os mais atentos deram conta do engano da senhora que, certamente, queria referir-se à orografia. Os sempre vigilantes venerandos e obrigados juraram, contudo, que a senhora terá dito “orologia” e que, portanto, não se tratou de lapso linguístico assim tão grave, uma vez que a Orologia é o estudo dos fenómenos que determinam a formação das montanhas. A dúvida ficará, sempre. Encerremos, porém, o assunto. E só apetece dizer, como o outro, que “é pior a amêndoa que o cimento”, querendo, presumivelmente, expor que “é pior a emenda que o soneto”.
Muito mais grave do que esta “calinada” ministerial terá sido outra com que o senhor primeiro-ministro, Luís Montenegro, nos brindou, recentemente, na algarvia Festa do Pontal. Na altura, deixou contentes muitos reformados a quem prometeu um bónus já em Outubro, garantido que “será-lhe” aumentada a pensão. Os ouvidos mais concentrados e bem-falantes, obviamente conhecedores da gramática da Língua Portuguesa, deram imediatamente conta de que ele queria declarar: “Ser-lhe-á aumentada a pensão.”
Como não podia deixar de ser, também aqui saíram à liça os defensores do líder da nação, jurando que o senhor não teve culpa. Pois, estava a ler o discurso que outro ou outra terá escrito. Admitindo que isso possa ser verdade, nada desculpa a “calinada”, porque um leitor atento e culto, como, supostamente, deve ser um chefe de governo, daria sempre pelo erro e, portanto, evitá-lo-ia.
A estes dois exemplos poderíamos juntar muitos mais, dado que são frequentes na comunicação oral e escrita no nosso país. Todos nós já perdemos a conta em relação aos locutores, aos comentadores e também a alguns jornalistas, bem como aos entrevistados e a tantos outros que não são capazes de distinguir entre “de encontro a” e “ao encontro de”. Trata-se, hoje, de um erro vulgar, comezinho até, entre muitos docentes do Ensino Superior e entre muitos atletas e demais praticantes de desporto, como já nos temos apercebido, repetidamente, nas televisões. Os bons falantes – sobretudo, os bem-falantes – sabem que a expressão “ir de encontro a” pretende significar algo negativo e que, assim, indica oposição ou um movimento violento. Por sua vez, a construção “ir ao encontro de” é positiva, revelando concordância ou afinidade.
Quanto ao uso de “quaisqueres”,outro erro recorrente, nem é bom falar! Se o termo “qualquer” é formado a partir do pronome “qual” e do elemento invariável “quer”, só o pronome “qual” pode tomar a forma plural. Correcto será, então, dizermos “quaisquer”.
Tive um professor que, muito cedo, me corrigiu um erro que eu dava com frequência. Fruto de ter nascido na zona de Coimbra, onde este erro é frequente entre os falantes da região, eu dizia, muitas vezes, “eles há-dem chegar”, em vez de “eles hão-de chegar”. Este é, também, um dos erros mais frequentes nos mass media, em geral. O verbo haver, como é um verbo impessoal, provoca outros disparates.
Há pouco tempo, vi e ouvi, num debate televisivo, um senhor engravatado, futuro deputado da nação, que rematava uma intervenção, polémica por sinal, garantindo que “ao seu ver”… Provavelmente, ele queria dizer “a meu ver”.
Acerca destas “calinadas”, termo que tem uso corrente em Coimbra e em toda a gíria estudantil em Portugal, poderíamos dar muitos mais exemplos. Referimos só mais um que também é usual, incluindo na classe política, em que não deveria verificar-se. Ainda recentemente, um político no activo declarou que determinada legislação teria de ser rapidamente “ratificada”. Na sua cruzada, o dito senhor o que pretenderia expressar seria que esse diploma teria de ser “rectificado”. Todos sabemos que “ratificar” significa “confirmar” e que “rectificar” corresponde a “corrigir”.
Durante largos anos, fui professor, maioritariamente, no Ensino Secundário. Até comecei a carreira como docente de Português, matéria que voltei a leccionar quando estive em São Tomé e Príncipe e que, hoje, continuo a leccionar ensinando a Língua Portuguesa aos estrangeiros, como voluntário na Delegação Centro da Assistência Médica Internacional.
Nos anos de docência, fui, sobretudo, professor de Filosofia. Porém, quaisquer dos meus ex-alunos ou alunas podem atestar que – embora tenha sido, fundamentalmente, professor de Filosofia – fui também, sempre, professor de Português. Aliás, nunca entendi muito bem aqueles colegas que comentavam que o Português deveria ser ensinado, apenas, pelos professores e professoras dessa especialidade. Assim como nunca entendi o motivo que levava alguns docentes a não assinalarem nem a corrigirem os erros dos seus alunos.
É tempo de todos os docentes assumirem que, em primeiro lugar, são professores de Língua Portuguesa e que, assim, podem dar um excelente contributo. Mesmo ensinado Matemática ou outra disciplina, é possível e conveniente ensinar a Língua Portuguesa. Basta pensarmos na importância do significado etimológico de qualquer termo respeitante a qualquer matéria que se ensine. Na maior parte dos casos, explicitar bem o significado etimológico dos termos permite que os alunos entendam, de forma clara, a matéria a ser leccionada em qualquer disciplina.
Segundo o norte-americano David Ausubel (1918-2008), defensor do construtivismo – ao reconhecer que o aluno é o principal agente construtor da sua aprendizagem –, uma das condições para que ocorra a aprendizagem significativa é a disposição do aluno para esse tipo de aprendizagem. Habitualmente, os pedagogos e psicólogos defendem que a aprendizagem significativa é a aprendizagem com significado. Então, é preciso compreender que a aprendizagem é considerada significativa quando algum novo tipo de conhecimento (conceitos, ideias, termos ou fórmulas) passa a ter um significado para o estudante, quando ele é capaz de explicar esse conhecimento com as suas próprias palavras e, principalmente, quando é capaz de resolver novos problemas. Enfim, quando o aluno compreende, realmente, o que é ensinado.
A aprendizagem é, pois, significativa quando houver interacção entre os conhecimentos prévios do estudante (o que já é sabido por ele) com os novos conhecimentos (aquilo que será aprendido). Essa interacção desenvolve um processo no qual esses diferentes saberes passam a ter significados psicológicos, pelo que os conhecimentos já assimilados passam a adquirir novos significados.
Será tão complicado para os docentes, de ontem e de hoje, entenderem estas questões? Tive, ao longo da vida, mestres muito importantes que tudo isto me ensinaram e, verdadeiramente reconhecido, quero, aqui e agora, prestar-lhes a minha singela homenagem.
Ouvimos, frequentemente, alguns docentes afirmarem que, cada vez mais, se fala e escreve pior, porque se lê cada vez menos. A este respeito, a professora de Português Lúcia Vaz Pedro publicou, em 2019, um livro notável intitulado “Camões conseguiu escrever muito para quem só tinha um olho”. Trata-se de uma obra pedagógica, muito prática, recheada de humor. Fica a sugestão de leitura. Como diziam os Latinos: “Ridendo castigat mores.”
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Nota:
1 – Na manhã de ontem (domingo, 25 de Agosto), 11 dias após o início do incêndio na ilha da Madeira, o fogo estava controlado e em fase de rescaldo, mas ainda não extinto. Por isso, o comandante regional da Protecção Civil admitia, aos jornalistas, haver sempre um factor de imprevisibilidade nos incêndios que exige “vigilância permanente”.
Recorde-se que o incêndio rural na ilha da Madeira deflagrou no dia 14 de Agosto, nas serras do município da Ribeira Brava, tendo-se alastrado aos concelhos de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol e, através do Pico Ruivo, também ao município de Santana.
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26/08/2024