Eleições presidenciais da Irlanda disputadas por duas mulheres

 Eleições presidenciais da Irlanda disputadas por duas mulheres

Cobh, na Irlanda. (Créditos fotográficos: Kristel Hayes – Unsplash)

Pela primeira vez, em 35 anos (desde 1990), só houve duas candidaturas à presidência da Irlanda e foram corporizadas por duas mulheres: a esquerdista independente Catherine Connolly, que ganhou as eleições de 24 de outubro; e a conservadora de direita Heather Humphreys, que reconheceu a vitória da adversária.

Catherine Connolly (en.wikipedia.org)

Sim, as eleições presidenciais da Irlanda tornaram Presidente da República da Irlanda a candidata independente de esquerda, de acordo com a contagem oficial, com a larga vantagem de mais de mais de 60% dos votos, derrotando a sua única adversária, a candidata do Fine Gael, Heather Humphreys, que reuniu pouco mais de 30% dos votos.

A vencedora, de 68 anos, forte crítica da União Europeia (UE), que tem sido uma deputada independente, desde 2016, conseguiu reunir o apoio da maior parte dos partidos da oposição de esquerdaincluindo o Sinn Féin, o Partido Trabalhista e os social-democratas – e teve também sucesso entre os eleitores jovens, numa altura em que a Irlanda enfrenta o aumento do custo de vida e uma grave crise na habitação, como outros países europeus.

Heather Humphreys (en.wikipedia.org)

A derrota foiassumida pela sua adversária, logo depois de os primeiros resultados terem mostrado que Connolly estava a caminho de ser eleita a próxima presidente do país. “Catherine será uma presidente, para todos nós, e será a minha presidente. Gostava, realmente, de lhe desejar tudo de bom”, declarou Heather Humphreys, de 62 anos, do partido democrata-cristão Fine Gael, em à estação de televisão pública RTE, felicitando a presidente eleita, pela sua vitória.

Outro fator que marcou o ato eleitoral, disputado apenas por duas candidaturas (neste caso, de mulheres), foi a elevada percentagem de votos nulos: um número recorde (13%) na primeira contagem das cédulas, que pode ser uma forma de protesto, perante a oferta limitada. Participaram cerca de 40% das pessoas num total de 3,6 milhões de eleitores elegíveis.

A presidente eleita é forte crítica da União Europeia(UE) – apesar de a República da Irlanda ser estado-membro desde 1973 –, sendo contra o plano de aumentar os gastos militares nos países da UE, devido à ameaça da Rússia e à pressão dos Estados Unidos da América (EUA) em reforçar o investimento na defesa, no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

Presidente eleita da Irlanda, Catherine Connolly. (pt.wikipedia.org)

Catherine Connolly, ex-psicóloga clínica e advogada, que foi vice-presidente da Câmara dos Deputados da Irlanda, como descreve a agência noticiosa Reuters, comemorou os resultados e disse estar muito satisfeita. “Quero agradecer a todos, mesmo àqueles que não votaram em mim. Compreendo as suas preocupações em relação a quem os representará melhor”, afirmou, citada pelo jornal britânico The Guardian.

Catherine Connolly vai suceder assim a Michael Higgins, de 84 anos, que já cumpriu dois mandatos desde 2011. O político independente – um dos presidentes mais velhos do Mundo – é conhecido, entre outros motivos, por andar sempre com o seu cão, um Boiadeiro de Berna, que lhe rouba, muitas vezes, a atenção, durante as suas intervenções públicas.

Jim Gavin, do partido Fianna Fáil. (en.wikipedia.org)

A forte crítica da UE e dos EUA denunciou os planos do bloco europeu para aumentar as despesas militares, tem criticado abertamente Israel, por causa da sua ofensiva em Gaza, e ganhou apoio entre os jovens eleitores, ao ter responsabilizado a política governamental pela crise da habitação.

Inicialmente, estavam três candidatos na corrida para se tornarem o décimo presidente do país. Todavia, Jim Gavin, o candidato do partido Fianna Fáil do primeiro-ministro, Micheál Martin, retirou-se da corrida devido a uma disputa financeira que remonta a 2009. Apesar da sua desistência, o nome de Jim Gavin permaneceu no boletim de voto.

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O presidente da República da Irlanda (Uachtarán na hÉireann) exerce um cargo sobretudo simbólico, cerimonial e diplomático, representando o país, a nível interno e na cena mundial, recebendo chefes de Estado visitantes e credenciais de diplomatas e detendo poderes constitucionais específicos, pois o incumbente tem pouca interferência no poder legislativo.

Dublin, na Irlanda. (Créditos fotográficos: Sophie Popplewell – Unsplash)

No entanto, assina as leis e os decretos, nomeia o primeiro-ministro (Taoiseach), que lidera o governo e que é proposto pela câmara baixa do parlamento (Dáil Éireann), e concede prémios, como o Gaisce – o President’s Award, um prémio conquistado por jovens, entre 14 e 25 anos, pela participação em diversas atividades por um determinado período (são três categorias: bronze, prata e ouro; o termo irlandês “gaisce” pode ser traduzido por “realização”).

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Em fins de setembro, alguns internautas fizeram passar a mensagem de que o governo irlandês tem o poder de impedir as pessoas de quem discorda de se candidatarem ao mais alto cargo do país, numa altura em que a Irlanda se preparava para as eleições presidenciais de 24 de outubro. Ou seja, qualquer pessoa que pretenda candidatar-se à presidência da Irlanda carece do apoio do governo e que este tentou, ativamente, bloquear aqueles de quem discorda.

Parece que se trata de uma atoarda. Não obstante, apenas se posicionaram três candidatos à sucessão do presidente cessante, o número mais reduzido de candidatos, desde as eleições de 1990. E um vídeo, visto mais de cem mil vezes, no X, afirma que a lista de candidatos poderia ter sido maior, se o governo não tivesse interferido, e que as eleições não serão justas, porque os cidadãos não podem votar em quem querem. “Na Irlanda, neste momento, o governo está a bloquear todos os candidatos com os quais não concorda. […] Não se esqueçam de que isto é uma democracia”, diz o vídeo.

(edublin.com.br)

Porém, a comissão eleitoral irlandesa estabelece, claramente, os critérios para quem se pode tornar presidente e como os candidatos são nomeados. Para se candidatar ao cargo, é necessário ser cidadão irlandês e ter 35 anos ou mais. Há três métodos de candidatura: o potencial candidato pode ser indicado por, pelo menos, 20 membros do Oireachtas (membros da câmara baixa ou senadores”; um candidato deve ser indicado por, pelo menos, quatro autoridades locais, como os conselhos de condado ou de cidade; e os antigos presidentes ou os presidentes cessantes podem candidatar-se, se tiverem cumprido apenas um mandato. O presidente tem o mandato de sete anos e pode ser eleito, pelo povo, para um máximo de dois mandatos, como foi o caso do presidente Michael D. Higgins. O período de candidaturas terminou a 24 de setembro.

Presidente cessante Michael Daniel Higgins. (pt.wikipedia.org)

Por isso, é errado sugerir que o governo pode impedir potenciais candidatos de se candidatarem à presidência, e o vídeo parece confundir o governo com o parlamento. Embora alguns membros do parlamento, que podem ser ministros do governo, possam recusar-se a indicar determinada pessoa, decidem em base individual, e a pessoa pode procurar nomeações de outros parlamentares ou senadores, independentemente do partido a que pertencem.

É emblemático o caso de Conor McGregor, antigo lutador de artes marciais, que anunciou, em março deste ano, numa plataforma anti-imigração, que se candidataria ao cargo de presidente. Todavia, no início de setembro, após uma reflexão cuidadosa e depois de consultar a família, disse que não pretendia candidatar-se à presidência.

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O facto de uma esquerdista independente ter vencido, por larga margem, as eleições presidenciais, não quer dizer que a extrema-direita não esteja em ascensão, na Irlanda.

O governo diz que há, no Mundo, pelo menos, 70 milhões de pessoas que reclamam ligação familiar ao país. Assim, a Irlanda é um país de emigrantes em massa, onde cresce, a cada dia, um sentimento de intolerância, face a requerentes de asilo, a migrantes económicos e a refugiados. Os motins avulsos têm servido para lembrar aos poderes que a crise na habitação e a subida do custo de vida podem suscitar manifestações violentas. E os protestos violentos dos fins de novembro de 2023 foram desencadeados por uma fação de hooligans, motivados por ideologia de extrema-direita, segundo Drew Harris, então comissário da polícia de Dublin.

Dublin (Créditos fotográficos: Juho Luomala – Unsplash)

A polícia deteve um homem na casa dos 50 anos e, depressa, começaram a circular nas redes sociais, associados a movimentos extremistas, rumores sobre a nacionalidade do atacante, não se alinhando as versões sobre se era argelino, marroquino ou romeno. E, depois de a polícia ter informado que uma menina de cinco anos corria risco de vida, a multidão vandalizou lojas, queimou um carro da polícia e um autocarro, danificou postes de eletricidade; e os confrontos feriram gravemente um agente da polícia de choque. 

Contudo,os protestos violentos não são comuns, no país. Já o são outros mais pequenos, junto de locais identificados pelo governo para o alojamento futuro de requerentes de asilo. Há, como em outros país da UE, protestos contra o apoio a migrantes e a refugiados.

Isso acontece nas grandes cidades, mas as cidades mais pequenas também têm estado na mira dos protestos, porque também aí alguns edifícios abandonados têm sido reconvertidos para alojar quem chega. Em 2019, no condado de Leitrim, um dos hotéis na lista do governo para a acolher requerentes de asilo foi incendiado duas vezes. Já houve protestos que bloquearam estradas e, em setembro de 2023, um grupo de manifestantes anti-imigração deteve deputados dentro do Parlamento. E centenas de pessoas reuniram-se para se oporem aos planos de transformar um hotel em Wexford, no Sueste da Irlanda, em alojamento para refugiados.

Wexford, no Sueste da Irlanda. (Créditos fotográficos: David Staincliffe, CC BY-SA 2.0. – mapcarta.com)

A Irlanda tem, claramente, um problema de imigração. Porém, discutir o “problema migratório” é difícil, quaisquer que sejam os critérios: rácio de estrangeiros para a população nativa; número de pessoas que esperam decisão sobre casos de asilo; falta de alojamento para migrantes; número ou periodicidade dos protestos anti-imigração; taxas de criminalidade de estrangeiros. Todos estes critérios são, no mínimo, simplistas, mormente, na Irlanda, que não tem um único político, a nível local ou nacional, que se identifique com a extrema-direita.

Emigrar faz parte da história comum de grande parte das famílias irlandesas. Períodos de fome generalizada e escassez de oportunidades, que durante quase 200 anos caracterizaram a vida, no país, levaram milhares de irlandeses a procurar outra vida nos EUA e na Austrália. Em vários estudos, os Irlandeses aparecem nos lugares cimeiros, entre os povos que mais simpatia nutrem por quem foge da fome ou da guerra. Porém, os últimos anos levaram à erosão desse entusiasmo, devido à mudança na demografia: dos cinco milhões de habitantes da Irlanda, cerca de um milhão que se declarou residente habitual, nos censos de 2022, não nasceu no país.

Cerca de um milhão de habitantes da Irlanda não nasceu no país. (Créditos fotográficos: Foto de Lukas Kloeppel – edublin.com.br)

A chegada de cerca de 70 mil ucranianos foi a faísca que acordou um sentimento latente em setores menos privilegiados da população: os que mal conseguem pagar as rendas e a quem o aumento do custo de vida cria uma sucessão de preocupações e de frustrações.

Em 2022, foram apresentados 13651 pedidos de asilo, o que representou um aumento de 186%, face a 2019, último ano comparável (antes da pandemia). Os 70 mil ucranianos são um caso distinto, já que a proteção temporária é conferida pela UE, ao nível central, e um estado-membro não pode recusar essa proteção a ninguém que esteja dentro da categoria definida (neste caso, pessoas que estivessem a fugir da guerra da Ucrânia, mesmo sem passaporte).

Com a escassez na habitação a nível nacional, tal como noutros países da UE, sempre nas notícias, qualquer medida do governo para aliviar os problemas dos requerentes de asilo é vista como investimento que podia estar a ser direcionado para a população irlandesa. Apesar do pleno emprego, as dificuldades da geração millenial, na Irlanda, são muitas.

Muitos estrangeiros procuram a Irlanda para trabalhar e viver.
(Créditos fotográficos: Nappy/olueletu – edublin.com.br)

A extrema-direita na Irlanda tem caraterísticas próprias, incluindo fações ultrarreligiosas, conspiracionistas antivacinas e nacionalistas com ódio visceral ao Reino Unido. Porém, alguns elogiam as forças de extrema-direita do país vizinho e ex-colonizador.

Niall McConnell, líder do Partido Nacionalista Católico Irlandês, queixou-se da “total abertura” das fronteiras e alegou que “os irlandeses nativos estão a ser discriminados racialmente”. Na sua opinião, os imigrantes têm tratamento preferencial no acesso à habitação social, cometem crimes (muitas vezes, de natureza sexual contra mulheres) e mentem para reclamar o estatuto de refugiado. Não há números que possam sustentar estas acusações. E Tommy Robinson, líder do banido grupo de extrema-direita English Defence League, é uma figura que inspira outros extremistas na Europa.

Niall McConnell, líder do Partido Nacionalista Católico Irlandês.
(donegalnews.com)

Para Niall McConnell, a imigração corre o risco de se tornar a versão moderna do período da “plantação”, em referência à colonização da Irlanda pela Inglaterra nos séculos XVI e XVII, em que terras foram confiscadas e colonos trazidos para anglicizar a população. Enfim, não é a incipiente extrema-direita que se apresenta como ameaça política nem a importação do discurso extremista, xenófobo, conspirativo que fazem caminho em Inglaterra, mas é uma realidade inegável na Irlanda.

Há vários fios a ligar os dois países. Estão nesse caso as palavras e as teorias da extrema-direita inglesa, que passam para o outro lado do Mar da Irlanda. Nas redes sociais, os jovens que chegam como candidatos a asilo são caraterizados por estes grupos como estando em “em idade militar”, de forma a transmitir que, de algum modo, podem ser violentos, sobretudo para as mulheres. Uma sondagem citada pelo jornal The Guardian mostra que as mulheres de classe média-baixa estão entre os grupos sociais que menos apoiam a receção de refugiados na Irlanda – um espelho do que sucede no Reino Unido.

Escultura na cidade de Dublin, em homenagem às vítimas da grande fome de 1845–1849, na Irlanda. (pt.wikipedia.org)

Tommy Robinson, principal figura da extrema-direita inglesa, fundador da banida Liga de Defesa Inglesa, foi recebido na Irlanda por ativistas de extrema-direita. O canal do YouTube “Off-Grid Ireland” (Irlanda fora do radar, em tradução livre) recebeu-o e a membros da Alternativa Patriótica (PA), um dos movimentos fascistas mais ativos no Reino Unido. E Mark Collett, fundador da PA e admirador de Adolf Hitler, entrevistado nesse mesmo canal, manifestou esperança de que as táticas e ideias da PA fossem reproduzidas na Irlanda.

Além destas personalidades, há outras que têm manifestado, de forma mais ordeira, as suas ideias, ainda que estas continuem a ser um nicho. São exemplos: Justin Barrett, cujo nome surgiu, na década de 1990, como um dos rostos do grupo de campanha antiaborto Defesa Juvenil, e que, em 2018, criou o Partido Nacional Irlandês, que defende a inversão das políticas migratórias; e Hermann Kelly, presidente do partido Liberdade Irlandesa (anti-UE), que apoia o regresso do controlo das fronteiras. Foi diretor de comunicação do grupo do parlamento europeu Europa da Liberdade e Democracia Direta, de que Nigel Farage foi copresidente.

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Dados os poderes limitados do chefe de Estado e a manter-se a atual composição partidária no parlamento, a nova presidente terá dificuldade em influir, ativamente, na resolução dos problemas conexos com a imigração e com o avanço da extrema-direita, a menos que seja dotada de grande magistratura de influência. Todavia, é de assinalar uma vitória presidencial feminina, que não é inédita, pois já foram presidentes Mary Robinson e Mary McAleese.

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27/10/2025

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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