Em memória de Boris Nemtsov, mártir da liberdade e da democracia

Boris Nemtsov (Créditos fotográficos: Ivan Lapyrin – Unsplash)
Boris Yefimovich Nemtsov (em Russo, Борис Ефимович Немцов) nasceu a 9 de outubro de 1959, em Sóchi, na Rússia – então, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e faleceu a 27 de fevereiro de 2015, em Moscovo, na Rússia, à vista do Kremlin.
O físico e político liberal foi vulto de destaque na introdução da economia de livre mercado e das reformas sociais democráticas na Rússia pós-comunista. Porém, após a ascensão de Vladimir Putin à presidência do país, tornou-se um dos seus críticos mais visíveis e francos na classe política russa, o que, supostamente, lhe valeu o assassinato.


Nemtsov cresceu em Gorky (mais tarde, Nizhny Novgorod). Embora criado na religião ortodoxa russa, do pai, aderiu à da mãe, judia, que influenciou muitas das suas crenças sociais e políticas. Nemtsov obteve um diploma em Radiofísica, em 1981, e o grau de Philosophy Doctor (Ph.D.) em Matemática e Física (1985), pela NI Lobachevsky State University em Gorky, e trabalhou como físico nuclear quântico de 1981 a 1990), no Gorky Radiophysics Research Institute.
Deixou o emprego para entrar na política e, em 1990, foi eleito para o Congresso Soviético dos Deputados do Povo. O então presidente russo, Boris Yeltsin, que o escolheu para governador do Oblast de Nizhny Novgorod (1991-1997). Na eleição presidencial de 1996, Yeltsin enfrentou o desafio do candidato comunista Gennady Zyuganov e tentou alinhar as preocupações públicas com a direção do país, reorganizando o seu gabinete. Em 1997, nomeou Nemtsov membro do Conselho de Segurança, ministro dos Combustíveis e Energia e primeiro vice-primeiro-ministro, a par de Anatoly Chubais, o principal arquiteto do programa de privatização da Rússia, no início dos anos 1990.


Nemtsov e Chubais, apelidados de “jovens reformadores” de Yeltsin, anunciaram planos para reformar impostos, habitação e bem-estar; para restaurar o controlo central sobre líderes regionais assertivos; e para conter o poder dos monopólios da Rússia (em gás natural, em eletricidade e na ferrovia). Os mercados de ações e os investidores estrangeiros confiavam que a Rússia iniciava uma era de liberalização económica. Porém, a determinação declarada do governo de mover a Rússia do “capitalismo de compadrio” dos primeiros anos de Yeltsin para um modelo mais liberal e transparente pô-lo em conflito com o grupo de financiadores que financiara a campanha de reeleição de Yeltsin, em 1996.
Em troca dos serviços prestados, os investidores tinham sido autorizados a escolher cargos governamentais influentes e empresas que estavam a ser privatizadas. Chubais e Nemtsov sustentavam que essa relação entre o governo e as grandes empresas distorcia a operação do incipiente mercado da Rússia, degradando o governo aos olhos da população e desencorajando o investimento estrangeiro.

(en.wikipedia.org)
Em suma, os “jovens reformadores” observaram e até possibilitaram a ascensão dos oligarcas e, agora, tentavam desfazer o dano, mas sem êxito. Afinal, as intenções do gabinete de reformas ficaram, em grande parte, no papel, paralisadas pela oposição da Duma (câmara baixa do parlamento russo), dominada pelos comunistas, pelos oligarcas e pelas regiões cada vez mais autónomas.
Nemtsov renunciou em 1997, para retornar à sua posição no governo do primeiro-ministro reformista, Sergey Kiriyenko, em 1998. À medida que a economia da Rússia implodia, Yeltsin, visivelmente doente, esforçou-se por afirmar o controlo e demitiu Kiriyenko, após cinco meses.
Nemtsov, visto, por muitos, como sucessor de Yeltsin, renunciou em protesto. A comitiva de Yeltsin, conhecida, nos media russos, como “a Família”, embora incluísse oligarcas, financistas aliados e membros da verdadeira família do presidente, procurava, com urgência crescente, um herdeiro para assumir o manto de Yeltsin.

Numa decisão que determinaria o curso da Rússia, no início do século XXI, Yeltsin não selecionou Nemtsov, mas Vladimir Putin, oficial de inteligência de carreira que era desconhecido do público, em geral. Em julho de 1998, Yeltsin fez de Putin diretor do Serviço Federal de Segurança (FSB), sucessor do Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti (KGB); e, logo depois, Putin passou a secretário do influente Conselho de Segurança, passando a primeiro-ministro em agosto de 1999, tendo-o Yeltsin, mais tarde, indigitado como seu sucessor presidencial.
É de frisar que Nemtsov, entre 1993 e 1997, foi também membro do Conselho da Federação; que, em 1998, fundou o movimento Jovem Rússia e cofundou a coligação Causa Direita; que, em 1999, foi um dos fundadores da União das Forças de Direita, bloco eleitoral que se tornou partido político; e que integrou a Duma Federal, entre 1999 e 2003.
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2008. (en.wikipedia.org)
Efetivamente, passado à oposição, Nemtsov juntou-se a Chubais e a outros membros do grupo de reformadores de mercado da Rússia para criar a neoliberal União das Forças de Direita, antes das eleições parlamentares de dezembro de 1999. A coligação obteve 8,5% dos votos, e Nemtsov ganhou um assento na Duma, mas não conseguiu a reeleição, em 2003. E, desde cedo, alertou para as tendências autocráticas de Putin, o que significou o fim da sua carreira política nacional na “democracia administrada” de Putin.
De 2005 a 2006, agiu como conselheiro económico do presidente ucraniano, Viktor Yushchenko. Em 2008, fundou o grupo pró-democracia Solidarnost, com o campeão de xadrez Garry Kasparov, e, em 2010, foi cofundador do Partido da Liberdade do Povo (PARNAS), a que copresidiu de 2012 a 2015. Entretanto, foi preso, em 2011, por ter participado num protesto antiPutin e ficou preso durante 15 dias. Em 2013, foi eleito para o parlamento regional de Yaroslavl e planeou concorrer a um assento na Duma nacional, em 2016.

Nemtsov foi crítico veemente da invasão e anexação ilegal da República Autónoma Ucraniana da Crimeia, por Putin, em 2014, e estava a reunir evidências para expor o papel da Rússia na guerra na região de Donbass, na Ucrânia, pois o presidente insistia que os militares russos não estavam diretamente envolvidos nos conflitos separatistas em Luhansk e em Donetsk, embora tais asserções fossem cada vez mais implausíveis, à medida que as baixas da Rússia aumentavam.

Em suma, a partir de 2000 até à morte, Nemtsov foi crítico declarado da governação de Putin como regime autoritário e antidemocrático, vincando a especulação e os generalizados desvios de recursos antes dos Jogos Olímpicos de Sóchi, bem como a interferência política e o envolvimento militar da Rússia na Ucrânia. Depois de 2008, publicou extensos relatórios sobre a corrupção no governo Putin, associando-a, diretamente, ao presidente. Foi ativo organizador e participante nas Marchas dos Dissidentes, da série de protestos, a Estratégia-31, e dos protestos de 2011-2013.

Boris Nemtsov foi assassinado, a 27 de fevereiro de 2015, ao lado da sua parceira ucraniana Anna Durytska, numa ponte perto do Kremlin, em Moscovo, com quatro tiros disparados pelas costas. Estava em Moscovo a participar na organização de um protesto contra a intervenção militar russa na Ucrânia e contra a crise financeira russa. Paralelamente, preparava um relatório sobre a participação de tropas russas na luta dos rebeldes pró-russos, no Leste da Ucrânia, o que o Kremlin vinha negando.
Nas semanas anteriores à sua morte, expressara o temor de que Putin o mandasse matar e, poucas horas antes, voltara a denunciar, numa entrevista, a ineficiência e a corrupção no governo, além de fazer fortes críticas à política russa na Ucrânia. No final de junho de 2017, cinco homens procedentes da Chechénia foram julgados num tribunal de Moscovo, acusados de terem assassinado Nemtsov, em troca de 15 milhões de rublos (253 mil dólares).

O júri declarou-os culpados, mas a identidade do mandante do crime não é oficialmente conhecida. E, em 2022, uma investigação da BBC, do grupo de jornalismo Bellingcat e do site The Insider revelou que, nos meses anteriores à morte de Nemtsov, membros de uma equipa de assassinato do FSB rastreavam os seus movimentos pela Rússia. Usando informações de um banco de dados de viagens do FSB, os investigadores determinaram que Nemtsov havia sido seguido por agentes do FSB, em mais de uma dúzia de viagens. Pelo menos, um dos agentes estava ligado aos subsequentes envenenamentos, quase fatais, do colega de Nemtsov, Vladimir Kara-Murza, e do colega líder da oposição Aleksey Navalny. O Kremlin negou qualquer conexão com o assassinato de Nemtsov, chamando a evidência de “inventona”.
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Um pouco por toda a parte, a marcar os 10 anos da sua morte, se sucederam ações em memória do combatente político russo, uma das vozes académicas e políticas mais poderosas a denunciar o regime autocrático da Rússia. Entre elas, é de destacar a declaração conjunta, publicada a 27 de fevereiro, pelo Canadá, pela Chéquia, pela Dinamarca, pela Estónia, pela Finlândia, pela França, pela Alemanha, pela Letónia, pela Lituânia, pelos Países Baixos, pela Noruega, pela Polónia, pela Roménia e pela Suécia, a assinalar 10 anos da morte de Boris Nemtsov.

“Hoje lembramo-nos de Boris Nemtsov, importante político russo, ativista anticorrupção e líder da oposição que foi brutalmente morto a tiros, perto do Kremlin, a 27 de fevereiro de 2015, poucas horas depois de apelar aos compatriotas para apoiarem uma marcha contra a invasão da Crimeia pela Rússia, em 2014. Lembramos a visão de Nemtsov para uma Rússia democrática e honramos a sua coragem, por se levantar contra o regime de Vladimir Putin, o que inspirou muitos.
“Durante a última semana de vida, Nemtsov estava a organizar uma manifestação contra a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2014, e a trabalhar num relatório, para demonstrar que tropas russas estavam no Leste da Ucrânia. Anteriormente, publicou uma série de relatórios detalhados sobre corrupção no Kremlin, ligando-os, diretamente, a Putin. O ativismo pró-democracia e liberdade de Nemtsov, junto com outras figuras proeminentes da oposição, foi percebido como ameaça ao Kremlin. O seu assassinato, como as mortes de outros ativistas da oposição, antes e depois dele, deve ser investigado, completamente e de forma transparente, para garantir que todos os responsáveis e envolvidos sejam totalmente responsabilizados.

“Dez anos depois, apesar da agressão incessante de Putin, no exterior, e da crescente repressão interna, o legado corajoso de Nemtsov continua vivo na legislação Magnitsky em todo o Mundo e nas vozes dos russos comuns, que continuam a lutar por uma Rússia democrática e se opõem à guerra ilegal de agressão do Kremlin contra a Ucrânia.
“De acordo com o Relator Especial da ONU [Organização das Nações Unidas], as vidas de centenas de presos políticos na Rússia continuam em grave risco, a menos que sejam libertados imediatamente. As autoridades russas devem cumprir as suas obrigações internacionais e libertar, imediata e incondicionalmente, todos os presos políticos.”
Por sua vez, autonomamente, da França surgiu a seguinte declaração: “Hoje, 27 de fevereiro [há uma semana], a França presta homenagem ao líder da oposição, Boris Nemtsov, que foi brutalmente assassinado perto do Kremlin, em Moscovo, em 2015.”
“A sua coragem e a sua luta incansável pela democracia e pelas liberdades fundamentais, que servem de fonte de inspiração para muitos russos e não russos, ressoam mais do que nunca num momento de crescente repressão à oposição, à sociedade civil e à mídia independente na Rússia”, prosseguia a declaração francesa.

“Dez anos após a morte de Nemtsov, os indivíduos que ordenaram o seu assassinato ainda não foram identificados. Um dos seus assassinos, que fora condenado a 14 anos de prisão, foi perdoado em troca de se comprometer a lutar nas linhas de frente e a participar na guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. A França, mais uma vez, apela às autoridades russas para que esclareçam, totalmente, esse crime hediondo e encerrem todos os processos contra os que defendem o direito de viver numa Rússia democrática, livre e pacífica, arriscando a sua liberdade e, às vezes, a vida”, relevava o mesmo documento.
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Em regime de permanência, trabalha a “Fundação Boris Nemtsov para a Liberdade”, fundada, em novembro de 2015, na Alemanha, com a missão de preservar o legado liberal do político russo.
De acordo com os Estatutos, a Fundação implementa projetos nas seguintes áreas principais: iluminismo e liberdade de informação; promoção dos russos pró-democracia e das suas agendas no discurso europeu e na celebração dos valores europeus; diálogo entre a sociedade civil russo-alemã; educação e formação profissional; e comemoração de Boris Nemtsov.

São, pois, seus objetivos preservar e desenvolver o capital humano, juntamente com a promoção da liberdade, da educação e dos direitos humanos. Para tanto, organiza uma variedade de programas educacionais, oferece suporte para media independentes de língua russa e fornece bolsas de estudo a jornalistas, a ativistas e a pesquisadores e ativistas de direitos humanos, bem como a estudantes que não podem cursar uma graduação na Rússia e na Ucrânia.
Em 2023, o “Russian Studies – Boris Nemtsov Educational Program” – programa de mestrado de dois anos e dois idiomas – foi credenciado na Faculdade de Artes da Charles University, em Praga. E, em cada ano, a Fundação concede o “Prémio Boris Nemtsov de Coragem” a uma pessoa que tenha demonstrado coragem excecional na luta pela democracia e pela liberdade.

Segundo a Fundação, Boris Nemtsov foi um político da oposição russa assassinado em Moscovo. Físico por formação, ganhou destaque, no final dos anos 1980, como ativista ambiental. Nos anos 1990, ocupou altos cargos no governo do primeiro presidente da Rússia, Boris Yeltsin. E, nos anos 2000, tornou-se um dos opositores políticos mais influentes de Putin. Foi autor de relatórios anticorrupção que expuseram a corrupção extensiva nas elites russas e um dos poucos políticos russos que condenou, publicamente, a anexação da Crimeia, em março de 2014, e a subsequente guerra em Donbass, bem como um dos líderes de protestos antiguerra, em Moscovo, que atraíram milhares de pessoas.

Nos últimos meses de vida, trabalhava no relatório “Putin War ”, publicado após sua morte. O seu assassinato tornou-se um dos assassinatos políticos mais flagrantes da Rússia moderna. Até agora, a investigação criminal oficial russa não respondeu às questões: “Quem organizou o assassinato de Nemtsov? Qual foi o motivo?” Todavia, a comunidade internacional reconhece o assassinato de Boris Nemtsov como politicamente motivado e apelou às autoridades russas que garantam uma investigação completa e transparente.
Em 2007, Boris Nemtsov publicou o livro “Confissões de um Rebelde”, em cujo prefácio explicou as razões do retorno à política como líder da oposição. Sentiu que o clima político se deteriorava rapidamente e que eram violados os direitos humanos. E escreveu que o respeito pelas liberdades e pelos direitos individuais, com a preservação e o desenvolvimento do capital humano, eram os pilares do estado democrático moderno. Por isso, o foco principal da Fundação é a educação em Humanidades, fundamental para uma democracia sustentável.
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Num momento em que estão em perigo as liberdades e os direitos humanos, Boris Nemtsov constitui uma inspiração e um apoio na luta democrática.
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06/03/2025