Encontros e lembranças (1)

Santiago do Chile (Créditos fotográficos: Michelle Celedon – Unsplash)
Os últimos dias do ano de 2024 foram de encontros, sobre os quais agora me refiro, marcados pela nostalgia de um mundo perdido, particularmente, o da minha infância e do reencontro com pessoas que, para mim, muito significam.
Um desses encontros foi com Álvaro Riffo, em casa do meu irmão, Rafael, e da minha cunhada Sylvia, em Santiago de Chile.
A família Riffo/Ramos foi uma constante companhia na minha infância e juventude, assim como na dos meus irmãos. O casal Branca Ramos e Jacob Riffo, pais de três filhos, foram uma visita quase diária na nossa casa. Com os seus filhos Jacob, Sergio e Álvaro, jogávamos e cruzámo-nos no mesmo liceu, na nossa infância, e estudámos na mesma universidade durante a juventude.


Jacob, o mais velho, um médico notável que, tendo sido perseguido durante a ditadura, foi condenado ao isolamento. Como médico neurologista, exerceu na região de Aysén (no Sul do Chile). Trabalhou mais de 50 anos no serviço da Saúde Pública, em vários centros, como o Hospital Regional Coyhai, que é o Servicio de Salud Aysén. Foi “seremi” (secretario regional ministerial) de Saúde em Aysén, tendo-se destacado pela sua vocação e entrega. Faleceu no mês de Maio de 2024.
Sergio Riffo1, a quem chamávamos de Queco, também conhecido no meio universitário como Mechón Riffo, foi companheiro de jogos na nossa vida. As nossas mães pareciam irmãs, a irmã que a minha mãe nunca teve.

Sergio foi estudante de Sociologia da Universidade de Concepción, ex-secretário-geral da Federação de Estudantes da Universidade de Concepción, em 1971, e militante do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR). Foi detido no dia 29 de Novembro de 1974 e continua, até hoje, ainda desaparecido. É, talvez, um dos mais referenciados detidos desaparecidos da ditadura chilena, entre os dois mil que ainda não foram encontrados. Assim, o nosso encontro revelou-se emotivo e carregado de sentimentos de recordação.
Lucila antes, mais tarde Gabriela
No sábado, 28 de Dezembro, visitei o Museu de San Francisco, em Santiago do Chile. A igreja de San Francisco2 (datada de 1575), em Santiago, ocupa uma vasta área no centro da cidade. É um dos mais antigos edifícios que se conserva e que resistiu a todos os cíclicos terramotos de um país assolado« constantemente por fenómenos sísmicos.
Junto à igreja, encontra-se o museu. Aqui, neste espaço, encontro-me com José Goñi3 e o seu mais recente livro “Gabriela Mistral – Su difícil camino al Nobel”.

José Goñi – ou Pepe, como é, familiarmente, tratado por nós – foi nosso vizinho na minha cidade e amigo íntimo dos meus irmãos, tendo acompanhado a nossa juventude como camarada e militante da esquerda chilena, nos tempos mais difíceis da nossa vida na época de Salvador Allende e do golpe militar de 1973.
Na conferência que proferiu, José Goñi começou por evocar a vida anterior de Gabriela, quando ela era ainda uma jovem de nome Lucila.
Por sua vez, o autor Godoy Alcayaga lembra os primeiros pseudónimos da futura Mistral. Durante 1904, Gabriela Mistral colaborou no jornal Coquimbo, de La Serena, utilizando os pseudónimos “Alguién”, “Soledad” e “Alma”. Pseudónimos que revelam, desde muito cedo, a humildade franciscana que a acompanhará toda a sua vida. Vítima de bullying na escola e, mais tarde, impedida de entrar na Escola Normal (Magistério) para ser professora, vai ultrapassar todas as dificuldades para se transformar numa notável educadora social, a nível internacional.
Em 1922, o governo do México, através do seu secretário de Educação Pública, o filósofo, educador e político José Vasconcelos, convidou-a a participar nos programas e planos de ensino das missões rurais e indígenas, como parte de uma reforma educacional introduzida após a Revolução Mexicana. Permaneceu até 1924, gerando contribuições que lhe renderam o reconhecimento de toda a nação, como a organização de bibliotecas populares. No final da sua missão, fez a sua primeira digressão internacional, que incluiu os Estados Unidos da América (EUA), a Itália, a Suíça, a França e a Espanha.

A notoriedade obrigou-a a abandonar o ensino e a desempenhar diversos cargos diplomáticos na Europa, nos EUA e na América Latina. Em 1926, foi nomeada secretária do Instituto de Cooperação Intelectual da Sociedade de Nações.
Gabriela Mistral foi nomeada cônsul do Chile e representou o seu país em Nápoles, em Madrid, em Lisboa e no Rio de Janeiro. Nos anos 30 e 40 do século passado, ela era considerada um ícone da literatura latino-americana.

Segundo assinala José Goñi, a escritora Gabriela Mistral era “uma mulher que, aos 31 anos, já era conhecida mundialmente e adorada em países como o México e em muitos outros.” E Goñi regista que, em 1945, Gabriela foi cônsul do Chile no Rio de Janeiro. E que tinha sido proposta para o Prémio Nobel da Literatura, em 1939, quando o então presidente do Chile, Pedro Aguirre Cerda, instruiu os seus ministros das Relações Exteriores e da Educação a trabalharem para obter esse prémio.
“Ao rever os arquivos da Academia Sueca e da Comissão Nobel, a primeira coisa que me impressionou foi que, em 1940, logo após a sua candidatura ter sido inscrita, ela já estava na pequena lista dos cinco ou seis nomes que apareceram como possíveis vencedores. Devido ao início da Segunda Guerra Mundial, o prémio foi suspenso até 1945, mas a Academia continuou a trabalhar e, durante todos esses anos, continuou a estar sempre nesta pequena lista”, recorda José Goñi.
Este biógrafo sublinha ainda que Gabriela Mistral se “sobrepôs a escritores extraordinários como Paul Valéry, Hermann Hesse, o qual, de facto, ganhou o Prémio Nobel no ano seguinte. André Gide que ganhou o prémio em 1947 e Thomas Eliot recebeu a mesma distinção em 1948. “É um verdadeiro feito o de Gabriela, a mulher mais importante da História do Chile”, salienta José Goñi.

Em 15 de Novembro de 1945, foi anunciado que Gabriela Mistral foi galardoada com o Prémio Nobel da Literatura e ela soube do facto pelas notícias, ao ouvir rádio. “Dois dias depois, viajou de barco do Rio de Janeiro para Gotemburgo, porque odiava aviões, numa viagem que durou 22 dias”, narra José Goñi. Depois, Gabriela viajou de comboio para Estocolmo chegando um dia antes da cerimónia. “Gabriela Mistral ficou 28 dias na Suécia, o que nos dá um material muito interessante do que fez durante a sua estadia naquele país depois de receber o Prémio Nobel da Literatura. A sua agenda estava cheia de actividades e, por onde passava, os auditórios estavam cheios. Ela era uma mulher superstar e eu colhi dos registros da imprensa sueca o que ela fez e disse enquanto estava lá, o que não é conhecido no Chile e é absolutamente inédito”, esclarece o biógrafo. “O romance termina quando, a 4 de Janeiro de 1946, nesta vez de avião, Gabriela apanha o voo de Estocolmo para Paris. Nesse momento digo que ela está a caminho da eternidade”, conclui José Goñi.
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Notas:

1 – Sobre Sergio Riffo, aceda à página electrónica Memória Viva.
2 – A Igreja de San Francisco começou a tomar forma de igreja em 1575, feita de adobe e com mão-de-obra indígena. Infelizmente, foi totalmente destruída devido a um terramoto, o que obrigou a reconstruir toda a igreja. Outro grande terramoto, em 1647, atingiu novamente o edifício e a sua torre foi destruída. Até parece brincadeira, mas, em 1730, outro tremor de terra derrubou a torre que já tinha sido reconstruída. A torre actual foi inaugurada em 1857, na qual colocaram um relógio de quatro faces.

3 – José Mario Goñi Carrasco (Concepción, 1948) é um economista académico, mas também – como regista a Wikipédia – “investigador, consultor, político, diplomata e escritor chileno, membro do Partido pela Democracia (PPD)”. Acrescenta a enciclopédia livre que foi, igualmente, “ministro de Estado da presidente Michelle Bachelet durante o seu primeiro governo, na pasta da Defesa Nacional, de 2007 a 2009”, e ainda embaixador nos Estados Unidos da América, na Suécia (de 1997 a 2000), na Itália (entre 2000 e 2004) e no México (de 2005 a 2007). Durante a ditadura militar chilena, viveu exilado na Suécia.
Publicou e editou livros e artigos sobre política, economia, bem como acerca da Suécia e de Olof Palme, primeiro-ministro sueco (entre 1969 e 1976 e de novo entre 1982 e 1986), o qual foi assassinado à saída de um cinema em Estocolmo. José Goñi também publicou contos e, recentemente, a editora Fondo de Cultura Económica de México publicou a sua primeira novela intitulada “Pablo y Matilde en el país del racimo”.
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13/01/2025