Escultura medieval, a arte e as pedras
À semelhança da pintura, a escultura medieval aparece associada à construção religiosa românica, visando não só a decoração das igrejas, mas, sobretudo, educar religiosamente os fiéis marcados pelo analfabetismo próprio desse tempo. Foi, em especial, nas igrejas construídas em locais de passagem, ao longo do caminho de peregrinação em direcção a Santiago de Compostela, que surgiram as primeiras esculturas deste estilo. É o que se pode ver em França, em Espanha e no Norte de Portugal.
Há as esculturas incorporadas na parte exterior, principalmente, no tímpano do portal, mostrando, logo à entrada da igreja, cenas da Bíblia e outras evocativas do Inferno, onde prevalece a ideia do eterno castigo dos pecadores e de que, mais importante do que a vida terrena, é a salvação da alma. Como na pintura, as dimensões das figuras dependem da sua importância hierárquica. No interior da igreja, é, frequentemente, nos capitéis das colunas que encontra lugar a escultura como forma de decoração, numa profusão de figuras, muitas vezes, fantásticas.
Na segunda metade do século XIII e na primeira metade do XIV, distinguiram-se, como centros produtores ou escolas de escultura, Coimbra, Lisboa, Évora e Batalha. Houve mais algumas, mas menos importantes, como a de Santarém. Entre os principais materiais utilizados, ganharam estatuto de qualidade a pedra de Ançã, o lioz e o mármore, embora, por vezes, também fosse utilizada a madeira.
A pedra de Ançã é um calcário do Jurássico Médio, com cerca de 75 milhões de anos, de textura muito fina, compacta e homogénea, sem veios. Particularmente macia, tem características óptimas para o trabalho de escultura. Deixa-se cortar facilmente e permite a execução de rendilhados ornamentais de grande pormenor e finura. No que se refere à cor, varia entre a esbranquiçada e a branco-amarelada, raramente branco-azulada. Tendo sido explorada e usada desde o tempo da ocupação romana, a utilização da pedra de Ançã na arte escultórica ganhou relevo a partir do século XIV, sendo de destacar o portal e o púlpito da igreja de Santa Cruz, em Coimbra, e o túmulo da Rainha Santa Isabel, no Convento de Santa Clara-a-Nova, na mesma cidade. A sua grande qualidade como pedra trabalhável a ponteiro e a cinzel espalhou-a por Espanha e por vários países da Europa.
Uma curiosidade relacionada com esta pedra tem a ver com o nome da cidade de Cantanhede, na vizinhança do local da sua exploração. Cantanhede radica no Baixo-Latim cantonieti, que significava “o lugar onde se explorava pedra de cantaria”. Por sua vez, “cantaria” deriva de “canto”, do Latim canthus, com o significado de “pedra”.
Lioz é o nome que, na nossa gíria do sector industrial e comercial, é dado aos calcários do Cretácico Superior, com cerca de 95 milhões de anos, da região de Lisboa-Pêro Pinheiro. O termo tem origem no Francês antigo liois (hoje, liais), que quer dizer “pedra rija”. Este calcário, próprio de um mar pouco profundo, de águas límpidas e mais quentes do que as que, hoje, banham as nossas praias no pino do Verão, foram, essencialmente, edificados por um tipo de bivalves, de conchas mais espessas do que as das ostras, conhecidos por rudistas. Estes organismos recifais, característicos desse período, cobriram os fundos litorais e, proliferando uns sobre os outros, construíram, camada após camada, os estratos de calcário que ainda podemos ver em Lisboa, por exemplo, sob o Aqueduto das Águas Livres, na Avenida Calouste Gulbenkian, ou na base do bairro (ou Sítio) dos Sete Moinhos, à entrada de Lisboa, pela Ponte Duarte Pacheco.
O lioz ocorre em cores variadas, entre pigmentações esbranquiçadas, beges, amareladas, rosadas e avermelhadas. O lioz mais branco foi a pedra usada em produção de cantaria ao serviço da arquitectura urbana, vulgar e monumental, de todas as épocas, a partir da Idade Média, em especial na cidade de Lisboa, em palácios, igrejas, fontes e chafarizes. Na primeira metade do século XIX, o lioz, nas suas diversas cores, foi a pedra escolhida na reconstrução e no enriquecimento de altares-mores de igrejas e de outros espaços interiores, em pavimentos e revestimento de paredes, como a Biblioteca Monástico-Real do Palácio Nacional de Mafra e a Biblioteca Joanina, no Paço das Escolas da Universidade de Coimbra. Muita desta pedra trabalhada – especialmente, padieiras e ombreiras, arcos e pelourinhos – foi transportada para diversas regiões do antigo Império Português.
O mármore, no dizer dos geólogos, foi um calcário do final do Ordovícico, com cerca de 450 milhões de anos, transformado por metamorfismo. É, pois, uma rocha metamórfica, de grão fino a grosseiro, predominantemente constituída por calcite, por vezes, com bandeado de óxidos de ferro. É uma rocha amplamente usada em construção civil e em estatuária. Acrescente-se que a calcite é um mineral constituído por carbonato de cálcio, a mesma substância química das conchas e de outros restos esqueléticos. Nos domínios industrial e comercial, mármore é toda a rocha susceptível de serração e de polimento. Na Antiguidade, era toda a pedra usada em cantaria.
Foram muitos os oficiais, alguns deles verdadeiros artistas, que trabalharam nestas escolas. Um ou outro “assinou” as suas obras, mas a maioria não inscreveu na pedra algo que os permita identificar. Um dos que temos registo é o Mestre Pêro, aragonês, do século XIV. Ao certo, só sabemos que nos chegou do lado de lá da fronteira, talvez de Aragão, mas havia quem dissesse que fosse originário de Castela. Sabemos que que viveu grande parte do seu tempo entre nós, que a sua actividade começou em Coimbra, nos anos de 1330, e que teve um papel de grande relevo na renovação da escultura gótica em Portugal.
O Mestre Pêro fez desaparecer a rigidez tão característica da escultura românica, tornando as estátuas mais naturais, esguias e com mais movimento. Relativamente às arcas tumulares, introduziu um novo tipo, em forma de paralelepípedo assente sobre leões. Grande parte da sua obra foi realizada na sua oficina em Coimbra, não se sabendo, ao certo, o que foi o seu trabalho pessoal e o dos oficiais seus colaboradores. Foi, sim, possível atribuir-lhe várias obras em diversos locais do território nacional. Foram muitas e, entre elas, estou a recordar-me do túmulo de Dona Isabel de Aragão (a Rainha Santa, como é mais conhecida entre nós), considerada a sua obra-prima,
Os túmulos de Dona Inês de Castro e do rei Dom Pedro I são duas magníficas peças esculpidas num calcário muito homogéneo e macio da região de Coimbra, muito provavelmente, a chamada pedra de Ançã. São a demonstração perfeita da escultura gótica, cuja autoria continua desconhecida. Há quem os atribua a artistas franceses. Mas também há quem defenda serem expressão da escultura tumular portuguesa da segunda metade do século XIV. Foram mandadas executar por Dom Pedro I, quando ele já estava na posse do trono de Portugal. Terminado o túmulo de Dona Inês, em 1360, ordenou que o colocassem no braço sul do transepto da igreja do Mosteiro de Alcobaça e que trasladassem para ele os restos mortais da sua rainha, até então sepultados em Coimbra. De seguida, ordenou que se fizesse um túmulo semelhante para ele e determinou que este fosse colocado em frente do da sua amada esposa, para aí repousar e a poder olhar frontalmente, no “dia da ressurreição dos mortos”.
A rara qualidade da pedra usada permitiu que as faces dos túmulos fossem minuciosamente decoradas com os brasões das respectivas famílias, bem como de cenas bíblicas e com motivos vegetalistas e geométricos.
O trabalho escultórico com esta pedra apresenta um contraste imenso com a escultura em granito, como a que se praticou, na mesma época, no Norte de Portugal, atendendo a que, por mais que os artistas quisessem, a dureza e a granularidade desta pedra não lhes consentiam. Por exemplo, em Lamego, podemos observar excelentes túmulos em granito, como é o de Dom Pedro, Conde de Barcelos, filho natural de Dom Dinis, no mosteiro de São João de Tarouca, esculpido no século XIV.
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15/07/2024