Espanha: Teatro e Transição – 50 anos 

 Espanha: Teatro e Transição – 50 anos 

Proclamação de Juan Carlos I como rei da Espanha, em 22 de Novembro de 1975. (escuelapce.com)

Num artigo de opinião do jornal El Pais (na edição de 04/02/25), intitulado “¡Celebremos la Transición!”, o articulista Ignacio Sanchez-Cuenca  analisa o processo de transição democrática em Espanha, assinalando a data da morte de  Franco e o regresso à democracia. 

Assim, Sanchez-Cuenca observa: “Na opinião pública, os inquéritos mostram que ainda há um alto nível de orgulho na maneira como a democratização do país foi realizada. A primeira vez que o CIS perguntou sobre isso, em 1985, quando os eventos ainda eram muito recentes, 90% dos que responderam à pergunta fizeram-no positivamente. Em 2018, último ano em que a questão foi incluída, a percentagem  caiu para 75%, mas ainda é extraordinariamente alto.”  

Nascido na Itália em 1938, Juan Carlos retornou à Espanha em 1955, a convite de Franco, tendo recebido uma educação militar. (Créditos fotográficos: Wikimedia Commons – operamundi.uol.com.br)
Adolfo Suárez ocupou o lugar de presidente do
governo de Espanha de 1976 a 1981, sendo o primeiro
presidente democrático após a ditadura do general
Francisco Franco. (pt.wikipedia.org)

A Transição começou com a morte de Francisco Franco. A coroação de Juan Carlos de Borbón, em 22 de Novembro de 1975, ocorreu dois dias após a morte de Franco e marcou o início da reforma. Tendo o novo rei herdado todos os poderes de Franco, actuou  com extrema cautela e alguma hesitação, mas quando viu que as reformas estavam  a colidir  com as instituições franquistas, Juan Carlos decidiu dar um impulso ao processo de abertura, colocando Adolfo Suárez à frente do Governo. 

O processo teve uma forte oposição popular nas ruas, muitas vezes, contestado com repressão policial, como a ocorrida na cidade de  Victoria, com cinco mortos por disparos dos agentes policiais, em Março de 1976. 

As primeiras eleições democráticas aconteceram em 15 de Junho de 1977. Todos os partidos puderam participar, excepto aqueles que defendiam abertamente uma república (como a Esquerra Republicana de Catalunya). O Governo de Adolfo Suárez ainda não era parlamentar, pois não estava sujeito ao controlo do Congresso; dependia, apenas, da vontade do rei. Em rigor, o primeiro governo democrático foi o que emergiu das eleições de 1979, realizadas de acordo com as disposições da Constituição de 1978. 

Acto da Esquerda da Catalunha de 8 de Junho de 1977. (ca.wikipedia.org)

O autor do artigo “¡Celebremos la Transición!” assinala ainda que a Transição terminou com as eleições de 1979, com o golpe de estado fracassado1 em 1981 ou com a vitória esmagadora do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), em 1982, que marcou o primeiro episódio de alternância democrática. 

Precisamente,  porque não é fácil encontrar um fim, faz todo o sentido celebrar o início da Transição.  

Manuel Fraga Iribarne foi presidente da
Galiza entre 1990 e 2005, bem como ministro da
Informação e Turismo (1962-1969) durante a ditadura
de Francisco Franco. (pt.wikipedia.org)

São várias as vozes da direita que se levantam contra as celebrações deste processo de  transição, marcada, fundamentalmente, pela morte de Francisco Franco, entre elas, o próprio  Partido Popular (PP), incómodo e de má consciência, ainda não superando o desconforto que representa vir da Aliança Popular (AP), partido liderado por Fraga Iribarne, o qual se opôs, o máximo possível, aos principais avanços da Transição. Segundo alguns, só se pode celebrar o aniversário da Constituição de 1978.

Outra das grandes conquistas da transição democrática é a “Ley de Memoria Histórica de España”, Lei 52/2007, de 26 de Dezembro, que reconhece e amplia direitos e estabelece medidas em favor daqueles que sofreram perseguição ou violência durante a guerra civil e a ditadura.2

Ao abrigo desta lei, foram retirados os restos de Franco do Vale dos Caídos, retirados monumentos e toponímias de cidades de figuras do governo militar e da ditadura saída da Guerra Civil (1936-1939). 

Francisco Franco (esquerda.net)

Finaliza o autor do artigo supracitado: O que será comemorado é o início de uma transição democrática após uma longa e cruel ditadura. Vamos também celebrar em grande estilo, é claro, a Constituição de 1978 (quando chegarmos a 2028). Foi um grande passo adiante para o país. Não há dilema: há muitas coisas para comemorar. A Constituição foi um elemento decisivo da Transição, mas não a esgota de forma alguma. Há muitos motivos para comemorar as ambas  conquistas.”

Importante assinalar que os restos mortais do humanista espanhol Rafael Altamira, juntamente com os da sua mulher, Pilar Redondo, dos seus pais e avós, foram trasladados a 10 de Fevereiro, do “nicho” em que repousavam para o monumento funerário que foi construído em sua homenagem, no cemitério de El Campello (em Alicante). O evento foi presidido pelo rei Felipe VI, que, pela primeira vez, compareceu no enterro de uma vítima da repressão franquista, embora este evento não estivesse inserido no programa de actos do 50º aniversário da democracia promovido pelo Governo. 

“O Sono da Razão Produz Monstros” é uma gravura do pintor espanhol Francisco de Goya pertencente à série “Los Caprichos”, publicada em 1799. (es.wikipedia.org)

Passados 75 anos da estreia de “Historia de una escalera” (“História de uma escada”), no Teatro Español, este clássico de Antonio Buero Vallejo volta aos palcos de Madrid, com enorme êxito de público. Depois de ganhar o Prémio Lope de Vega do Município de Madrid, em 1949, tornou-se uma das obras essenciais da literatura dramática espanhola.  

O tempo passa nesta escadaria, verdadeira protagonista do drama, enquanto as vidas dos seus vizinhos convergem. Pessoas simples que, com os seus desejos e frustrações, tentam sobreviver numa sociedade impossível. Um enredo composto por contos que se passam em três períodos da nossa História (Primavera de 1919, Outono de 1929 e Inverno de 1949) e que nos permitem, sem dúvida, encontrar coincidências com a sociedade actual, três quartos de século depois. 

(teatroespanol.es)

Como afirma a directora e encenadora Helena Pimenta, na respectiva folha de sala: “Retrato da realidade espanhola da época em que Buero Vallejo a escreveu, ’História de uma escada’ reflecte uma situação que afectava não apenas a classe média baixa, como os moradores da casa, mas também grande parte da população que, após uma devastadora guerra civil, sofria uma situação calamitosa em todos os sentidos.” 

Helena Pimenta escreve ainda: “A trama gira em torno de três momentos da vida espanhola na primeira metade do século XX, apresentando, no espaço da ‘modesta escada’, os pequenos acontecimentos que acontecem a três gerações de várias famílias. Os moradores deste cortiço/ilha/habitação colectiva, através de acções quotidianas, nos farão conhecer os seus sonhos, as suas frustrações, as suas tristezas, num tempo e num ambiente onde tudo falta. Todos nós queremos saber onde está escondida a felicidade, nós a buscamos, assim como buscamos a verdade e a liberdade. Mas nascer num lugar ou num tempo e em certas circunstâncias é algo muito relevante. A dialéctica entre a liberdade humana e a fatalidade do destino, que Buero identifica com ‘o absurdo ou a imperfeição da estrutura social’, ocupa toda a peça e as questões nela levantadas ressoam hoje como ressoaram ontem, alertando-nos para as nossas realidades mais negativas, com o único propósito de manter viva a esperança.”

(teatroespanol.es)

A primeira peça de Buero Vallejo que vi foi “A Claraboia” (“El tragaluz”) – peça estreada no Teatro Bellas Artes, de Madrid, em 7 de Outubro de 1967 – quando ainda me encontrava no Chile, num pequeno teatro de Santiago, chamado Teatro del Angel, hoje desaparecido. 

Teatro Bellas Artes, de Madrid. (esmadrid.com)

Na edição de 2013 do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), a Compañia Ferroviaria, de Barcelona, em coprodução com o Teatro Circo, de Murcia, apresentaram, no Teatro Rivoli, “El Sueño de la Razón”, espectáculo de Antonio Buero Vallejo. A peça situa-se  em Madrid, no ano de 1823, durante o período de terror desencadeado por Fernando VII, na sua luta contra os liberais. O protagonista é o pintor Francisco de Goya. Sofrendo uma  surdez aguda, o dramaturgo simboliza a incapacidade de alguns de ouvirem o significado da realidade. 

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Notas:

1 – Popularmente conhecido como “El Tejerazo”, em 23 de Fevereiro de 1981 (“23F”), o Congresso dos Deputados foi tomado por assalto pela Guardia Civil. Assim, legisladores, governo e líderes da oposição foram mantidos reféns durante 18 horas, deixando o país inteiro paralisado. 

O “23F” foi o teste mais difícil para a incipiente democracia espanhola. Os principais autores da tentativa do golpe (Milans del Bosch, Armada e António Tejero) foram condenados a 30 anos de prisão, embora tenham sido soltos muito antes de cumprirem as suas penas.  

(rtve.es)
(fam-morarnaespanha.mailerpage.io)

2 – A Lei 52/2007, de 26 de Dezembro, que reconhece e amplia direitos e estabelece medidas em favor daqueles que sofreram perseguição ou violência durante a Guerra Civil e a ditadura, popularmente conhecida como Lei da Memória Histórica, é uma lei do ordenamento jurídico espanhol, aprovada pelo Congresso dos Deputados, em 31 de Outubro de 2007, com base no projecto de lei aprovado anteriormente pelo Conselho de Ministros, em 28 de Julho de 2006, durante o mandato do socialista José Luis Rodríguez Zapatero (8.ª e 9.ª legislaturas) como presidente do Governo. 

3 – Antonio Buero Vallejo (Guadalajara, México, 1916 – Madrid, 2000), dramaturgo e romancista espanhol, vencedor do Prémio Lope de Vega em 1949 e do Prémio Cervantes em 1986. 

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20/02/2025

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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