“Há na terra outra coisa, além da paz?”
Qualquer tomada de posição acerca de determinado assunto é sempre confrontada com os pontos de vista de quem está noutro lugar ou noutro tempo, sobretudo, aquele que é cronometrado pelo sofrimento e pelas alegrias de cada um. Neste universo de possibilidades e de escolhas, apercebo-me de que, muitas vezes, os escritores e os historiadores, embora não exclusivamente, sabem ler o ruído do mundo, graças à sua capacidade de escutar o falso silêncio que os circunda. Por isso, entre os de outros autores que vão para além da espuma dos dias, procuro não perder os textos de José Pacheco Pereira. No seu artigo de sábado (18 de Maio, no jornal Público), reafirma que criticar as violências cruéis de Israel em Gaza não é ser anti-semita.
Na realidade, julgar alguém pelos seus actos ou palavras – mesmo reconhecendo que os espelhos também nos reflectem, qualquer que seja o nosso ângulo de incidência, enquanto sujeitos e observadores – não nos granjeia o rótulo de que experimentamos ódio ou antipatia acerca de quem fazemos uma apreciação, em dada circunstância. Assim, o historiador repara que a “absoluta indiferença com as mortes civis palestinianas, velhos, mulheres e crianças, mostra que as vidas palestinianas valem muito pouco, se para matar um militante do Hamas pouco importa matar pelo caminho 100 civis e destruir para muitos anos a possibilidade de se viver em Gaza a não ser em mais um campo de refugiados”.
Não obstante saber-se que o Hamas usa a população como escudo, Pacheco Pereira argumenta: “Não é preciso aceitar a classificação de genocídio para condenar de forma veemente o modo como os israelitas estão a actuar em Gaza, cometendo todos os tipos de crimes de guerra, violando todas as regras do direito da guerra, do direito internacional e a mais comezinha humanidade […]” Comparando este conflito no Médio Oriente com uma “variante do Inferno de Dante”, o articulista sinaliza e predestina todos aqueles que exibem “esta estagnação da alma que é um pecado mortal”.
Hoje, também escuto a voz de Mahmoud Darwich, poeta (re)traduzido por Albano Martins. Nascido na década de 1940, na Galileia, a poucos quilómetros de São João de Acre (importante centro de peregrinação para os cristãos e cruzados, na Idade Média), Mahmoud Darwich, aos seis anos e ante as tropas israelitas, foi obrigado a partir com a família para o exílio, do qual regressa clandestinamente, pouco tempo depois. A sua vida reparte-se entre Amã, na Jordânia, e Ramallah, na Palestina. Reconhecido como um importante poeta contemporâneo, as suas “propostas poéticas” têm sempre, como declara, “a sua origem na longa história da poesia árabe, nos seus ritmos, nos seus cânones estéticos”.
Recorrendo a tal cartografia, Mahmoud Darwich diz-nos que, nesta terra, há coisas que merecem viver. Pois, como insiste, “nesta terra está a dona da terra, mãe dos prelúdios e dos epílogos”. “Chamavam-lhe Palestina. Chama-se ainda Palestina”, sublinha, admitindo que a “origem da poesia é sem dúvida uma só: a identidade do homem, desde o passado do seu exílio até ao seu presente exilado”.
Na antologia “O Jardim Adormecido e Outros Poemas” (editada pela desaparecida Campo das Letras, em Maio de 2002), ao concluir o poema “Um céu para um mar”, Mahmoud Darwich questiona: “Há na terra outra coisa, além da paz? Há outra coisa, nas pessoas, além da alegria? Reconcilio-me comigo mesmo e todos os povos entram nos elogios do meu vinho… e nas oliveiras do meu arco. Podem os pássaros de prata morrer num dia como este? Pode alguém morrer?”
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 19 de Maio) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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20/05/2024