“Hamlet” no Teatro Nacional São João

“Hamlet”, de William Shakespeare, com encenação de Nuno Cardoso. (tnsj.pt)
Palavras, palavras, palavras…
(acto II, cena II)
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“Hamlet”, de William Shakespeare, é a peça mais palavrosa do bardo inglês. Com os seus cinco actos, 20 cenas, mais de 4420 linhas e 30 personagens, é uma peça de excelência de Shakespeare, também útil para citar em aforismos, fazer ressalvas e como complemento de outros modos de aplicação literária.
Escrevo motivado pelo último espectáculo do Teatro Nacional São João (TNSJ), com encenação de Nuno Cardoso, antes da sua partida para novos rumos teatrais, depois de ter estado à frente dessa estrutura durante seis anos.
Numa entrevista ao Jornal de Notícias (JN), na edição de 3 de Abril de 2025, Nuno Cardoso confessava que tinha sido feliz no TNSJ. Somos testemunhas dessa felicidade e do seu trabalho para o conseguir. Vimos quase toda a sua produção como responsável artístico e assinalo com idêntica felicidade, agora como espectador, aquilo que foi realizado no TNSJ.

É de destacar, entre as últimas produções, uma bela encenação de “As Bruxas de Salem”, da autoria de Arthur Miller, e duas adaptações de duas obras contemporâneas da literatura portuguesa com assinalável sucesso, tanto no palco como junto do público: “O Ensaio da Cegueira”, de José Saramago, e “O Fado Alexandrino”, de António Lobo Antunes.

“Hamlet”, por tudo aquilo que foi anunciado no início deste artigo, transforma-se assim, enormemente, numa fonte de inspiração para um encenador. Uma encenação da obra completa implica, aproximadamente, mais de quatro horas de duração, de maneira que é susceptível de adaptações, de reduções, de cortes e de dramaturgias renovadas.

O cinema entregou-nos grandes adaptações como as de Laurence Olivier (em 1948), a versão russa – belíssima! – de Grigory Konsintzev (em 1964), e a versão cinematográfica mais completa da peça, de Kenneth Branagh (no ano 1996).
Como tudo em Shakespeare, o discurso não são apenas palavras. É um discurso filosófico, um discurso de ética, de estética de arte e de vida, e da melhor forma de representar…. Tive de esperar por William Shakespeare e por Miguel Cervantes para ter toda a Humanidade na obra escrita. É esse o pensamento de Harold Bloom1, autor de uma obra completa e fundamental sobre o poeta e dramaturgo inglês.
Antes de começar, a peça já está em acção. Assim como a vemos nesta encenação, os actores deambulam no cenário ou no espaço cénico, à espera da actuação… A “máquina” – palavra enigmática que aparece numa carta da Hamlet a Ofélia – explica-nos, talvez, a engrenagem da loucura fingida do príncipe, que se converte numa ferramenta para descobrir a verdade da morte do seu pai.

Antes da peça, Hamlet estava em Wittenberg, onde estudava. Era um jovem estudante e a supressiva notícia da morte do seu pai obriga-o a regressar a Elsinore, para assistir aos funerais do rei Hamlet. E, paradoxalmente, para também assistir às prematuras bodas da sua mãe, a viúva, com o seu tio Cláudio, o novo rei.
Esta união demasiado próxima da morte reflecte-se num dos primeiros monólogos da personagem, logo no primeiro acto: “HAMLET: Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se [d]esfizesse, fundindo-se em orvalho! […] Ela casou-se: – Oh, velocidade mais perversa, para postar com tanta destreza em lençóis incestuosos! […] Não é, nem pode ser bom; / Mas quebre meu coração, pois devo segurar minha língua”, lamenta-se Hamlet, perante a infidelidade da sua mãe, que qualifica de incestuosa (acto I, cena II).
O fantasma do rei Hamlet aparece aos guardiães do castelo e a Horácio, estes revelam essa capacidade e Hamlet vai ao encontro do fantasma para saber porque vagueia nas imediações do castelo. Será o próprio fantasma quem narra a sua morte, que se revela um assassinato pela mão do seu irmão Cláudio. O fantasma pede a Hamlet para vingar a morte: “[…] lembra-te de mim […]”.
A partir deste momento crucial, Hamlet finge uma loucura para desvendar a verdade do crime: “Dos gonzos saiu o tempo. Maldição! Ter vindo ao mundo para endireitá-lo!” Esta é uma frase do personagem Hamlet, no acto I, cena V.
Loucura essa que se estende quase até ao final da peça, no acto V, e que desaparece junto do túmulo de Ofélia, o túmulo anterior de Yorick, o bobo da corte, o outro louco com o qual Hamlet brincou quando era criança.

A encenação de Nuno Cardoso coloca a acção num espaço metálico, que nos lembra um matadouro, uma garagem ou uma fábrica abandonada… manchada de sangue. As paredes metálicas, sonoras e corrediças, incorporam e sublinham na cena o dramatismo da ação, acentuando as passagens de cenas e acrescentando a tensão dramática.
Se trinta e tal personagens podem ser interpretados por onze actores, reconhecemos que a adaptação joga a favor do espectáculo. Um único actor – muito à maneira de Shakespeare – interpreta a toda uma trupe de seis ou sete actores. Neste caso, a função coube ao actor Jorge Mota, que, em cadeiras de rodas, entra em cena como se fosse uma carruagem medieval de actores itinerantes.
Este artigo de opinião não é uma crítica teatral. Não pretendo ser crítico. É, apenas, um testemunho da felicidade que Nuno Cardoso encontrou na realização desta sua versão de “Hamlet”; e da felicidade que eu e outros espectadores podemos encontrar, ao assistirmos a esta representação.
Um “Hamlet” será sempre necessário num repertório de um teatro nacional e, nesse sentido, Nuno Cardoso cumpriu a sua missão de trazer o melhor da literatura para um palco que estará sempre habitado por fantasmas.
Na cena em que Hamlet dialoga com Polónio, o senhor camarista, pai de Ofélia, lê um livro. Sempre me questionei sobre que o livro estaria a ler. Atendendo à influência dos clássicos em Shakespeare, talvez Plutarco, Juvenal, Plauto, Terêncio ou Ovídio, os latinos em geral… Imaginei, nesta ocasião, Propércio2 e este fragmento de elegia (“Elegias”, 3.1) pode ser quase um epitáfio para o príncipe Hamlet: “[…] Roma também me louvará entre os seus últimos descendentes: Eu mesmo prevejo este dia após a minha morte. Que uma lápide não aponte para os meus ossos num túmulo esquecido: profetizou-o o deus Lício, aprovando os meus desejos.”

No entanto, a frase final de Hamlet – “O resto é silêncio” – cai como um pano de ferro na boca do palco. O que se segue não será o silêncio, caberá a Horácio (guardião do tempo e das horas…), o companheiro de Hamlet, narrar os acontecimentos passados. Enorme tarefa para um amigo, que bem poderia dar uma outra peça de teatro!
Finalmente, quero salientar o regresso de Alberto Magassela ao TNSJ, um amigo e actor que muito aprecio, bem como a excelente colectânea de textos que compõem o “Manual de Leitura” do espectáculo.
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Notas:

1 – Segundo Harold Bloom, enquanto autor da obra “Shakespeare – A invenção do humano”, Shakespeare não foi apenas o maior poeta e prosador da História. “Ele pensou de modo mais abrangente e original do que qualquer outro escritor”, escreve o crítico e professor norte-americano Harold Bloom, sublinhando: “Inventou o humano como o que conhecemos até hoje.”

Propertius). (pt.wikipedia.org)
2 – Como nos informa a Wikipédia, “Sexto Aulo Propércio (43 a.C.-17), conhecido apenas como Propércio, foi um poeta elegíaco romano, ao que tudo indica, nascido em Assis, Úmbria, na Itália”. Refere, igualmente, esta enciclopédia livre que Propércio teria escrito entre quatro ou cinco livros de elegias, “dos quais todos nos restam, ainda que com alguma diferença no que diz respeito ao segundo livro”. Alguns filólogos, como Karl Lachmann, “propõem que esse livro, isto é, o segundo, seriam dois livros na verdade”. Entretanto, apesar desta polémica ainda em curso, é mais comum concordar que o poeta teria escrito quatro livros de elegias, a partir de 25 a.C. até 16 a.C., “o que o posiciona entre os chamados poetas da época de Augusto”.
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17/04/2025