“Homem-Macaco” de Aveloso: caso que a medicina não esclareceu

Localidade de Aveloso. (pt.wikipedia.org)
No ano letivo de 1965-1966, o meu professor de Música e prefeito de estudos, que fora, até então, pároco das freguesias de Prova e do Aveloso, do concelho de Mêda, relatava extraordinários factos protagonizados pelo homem do Aveloso que, atacado de estranho mal (nada de possessão diabólica), só acalmava, bebendo enormes quantidades de água.

A história conta-se em três penadas. Depois, há testemunhos que a pormenorizam.
Albano de Jesus Beirão nasceu na aldeia de Aveloso, concelho de Mêda, distrito da Guarda, a 1 de agosto de 1882, filho de António Beirão, natural das Astúrias, fugido de Espanha, e de Felícia de Jesus, rapariga do campo, natural de Aveloso. A partir dos sete anos de idade, começou a ser vítima de estranhos ataques que o transfiguravam por completo, que não chegaram a ser devidamente diagnosticados nem explicados e que lhe conferiam poderes sobrenaturais. Deixava de conhecer as pessoas, ficava com descomunal força e com extrema agilidade, perdia peso e dava saltos enormes, inconcebíveis, trepava pelas paredes, rebolava-se pelo solo, corria e uivava como lobo ou como cão, percorrendo as estreitas ruas da aldeia, de dia ou de noite, estarrecendo os moradores. Deixou de frequentar a escola, porque os colegas e o professor lhe tinham horror.

A mãe, por o filho ter uma doença destas, deixou de comer e de beber, fora emagrecendo, ficara seca, “seca como as palhas” e deixou-o órfão, ainda bastante novo.
Os ataques passaram a ser frequentes e os habitantes, embora com receio, acabaram por se acostumar ao “Albaninho” ou “Albano do Mal”. Diziam que o jovem era possuído por um “espírito ruim” que o deixava naquele estado. À soleira das portas, colocavam-lhe bacias cheias de água que Albano sorvia, sofregamente, em quantidades imensas. Contam-se muitas histórias das suas proezas. Costumava subir ao pelourinho da aldeia de cabeça para baixo e de pernas para cima e, chegado ao topo da coluna, fazia o pino sobre a cabeça. Andava de roupa interior, mas, apesar das correrias violentas, nunca rompeu a roupa. Metia-se em tocas de raposas e expulsava-as de lá mais as suas crias; dava coices às mulas; trepava aos moinhos e por lá andava a brincar; ou então, à cabeçada, deitava a baixo portões de ferro. Por não o deixarem entrar no comboio, devido à falta de bilhete, chegou a correr na linha em frente do comboio em andamento, até que o aceitaram como passageiro.

Cresceu e chamou as atenções onde quer que fosse. Era o terror da baixa de Lisboa, que o alcunhou de “Homem-Macaco”, pois subiu à estátua do Marquês do Pombal, dos comerciantes do Porto, onde trepou, facilmente, a Torre dos Clérigos, das feiras aonde ia e onde afugentava multidões. Foi internado no Hospital Conde de Ferreira, no Porto, e no Hospital de Rilhafoles (atual Miguel Bombarda), em Lisboa.

A ficha do seu internamento, a 1 de outubro de 1904, em Rilhafoles refere: “Ataques muito repetidos e muito violentos, vindo sempre com a mesma forma: perda de sentidos, que dura um minuto; e, depois, movimentos violentos, correrias, saltos, acompanhados de gritos e urros. No quarto, onde só observei os ataques, os saltos e as corridas dão-se da grade da janela para a porta, com uma grande agilidade e rapidez. O doente agarra-se às grades, lá no alto; e, depois, atira-se lá do alto para o chão, caindo a quatro patas, como um gato, para correr à outra grade. No fim do ataque, as coisas acabam e só dá gritos pequenos e levanta-se. Salvo quando se pendura às grades, não se vê senão a quatro patas, estando, em regra, os dedos das mãos fletidos nas articulações extremas e é assim que, em regra, a mão pousa. Outras vezes, a flexão é menos e as polpas apontam. As mãos não são utilizadas para nada. Muitas vezes, o doente remove coisas que estão diante de si, mas sem o emprego das mãos. Durante estes movimentos, gritos que chegam a apavorar.”
Foi diagnosticado como histeroepiléptico com manifestações de licantropia (síndrome em que a pessoa sente a ilusão de se poder transformar – ou se transformar mesmo – em animal).

As autoridades não sabiam o que lhe fazer (não era criminoso nem louco) e deportaram-no para Angola, num vaso de guerra, na tentativa de lhe dar sumiço. Dizem que, durante a viagem, foi atirado borda fora e que passou debaixo do casco do navio, nadando debaixo da água até à costa. Esteve na África, durante dois anos, onde aterrorizou nativos e lutou com leões, sem nunca se ferir. De volta a Portugal, uma comissão científica de três médicos estudou o seu extraordinário caso. Levaram-no para vários centros universitários europeus, na Itália, na Inglaterra, na Alemanha, na Rússia, na Espanha, na Bélgica e na Suíça. A sua perturbação nunca foi diagnosticada com clareza. A partir de 1932, os ataques desapareceram tão misteriosamente como surgiram. Segundo a sua advogada, Silvina de Almeida, referindo pessoas da aldeia, teria acontecido, depois de ter sido ferido com uma facada, durante uma rixa.

Albano Beirão teve mulher e duas filhas. Uma delas morreu internada num asilo, em Lisboa, e a mulher abandonou-o, levando a outra filha consigo. Os seus conhecidos e familiares referem que, no estado normal, era pacífico e caridoso. Morreu no Hospital da Guarda, a 2 de agosto de 1976, um dia após o seu 94.º aniversário. Sensacional em vida, foi-o após a morte. O seu enterro espantou a aldeia, pois do caixão, que nunca foi aberto, escorria sangue. Alguém disse que o cadáver não estava inteiro, por ele ter vendido a sua cabeça aos alemães, para estudo post-mortem.

(arquivos.rtp.pt/conteudos/fenomeno-ep-04-parte-i)
O extrato da ficha clínica no Hospital de Rilhafoles é citado no documentário da série televisiva Fenómeno (produção Mínima Ideia, 2000, transmitida pela RTP2) que lhe foi dedicado. Neste documentário, é referido que, em 1963, a Fundação Calouste Gulbenkian patrocinou um estudo da ficha clínica de Albano Beirão, com o objetivo de descobrir a causa do seu estranho comportamento. No relatório, o médico holandês A. van Ginhoven afirma que, durante os ataques, Albano Beirão chegava a levitar. Pela descrição dos sintomas paranormais, é possível que fosse afetado pela síndrome da kundalini (suposto fenómeno bioelétrico e espiritual, uma energia adormecida que fica concentrada na base da coluna) ou que, espontaneamente, o seu sistema nervoso ativasse facilmente a energia ki (força cósmica e vital).
Em 2003, Américo Rodrigues, escreveu e encenou uma peça de teatro sobre ele: “O mal, a incrível estória do homem-macaco-português”. Uma edição e produção do Aquilo Teatro.
A 2 de junho de 1972, em conversa com Manuel Daniel, Albano Beirão recordou toda a sua vida.
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A revista municipal Côa Visão, n.º 6, de 2004, relata: “Natural da freguesia do Aveloso, concelho da Meda, distrito da Guarda, foi conhecido, nos anos 1920 e 1930, pela sua força e agilidade em subir torres e casas, em correr e saltar, de forma invulgar, como se de um macaco se tratasse. Foi, por isto, conhecido em Portugal e no estrangeiro. Morreu nos anos 1970, sem que a medicina esclarecesse o fenómeno.”
E o relato prossegue: “Albano de Jesus Beirão, o nosso Albaninho, para uns, é um fenómeno inexplicável, para outros é um mito; para alguns outros, é um mistério com um homem dentro. Colocados perante o Albaninho como simples observadores, tomamos, necessariamente, uma destas posições, e, tal como vemos, de forma diferente, um copo com água dentro, uns veem menos a água, se se fixam na beleza do recipiente, outros deleitam-se na total transparência do cristal, enquanto há quem se abstraia de tudo e se concentre na pureza do líquido.”

Na referida publicação da Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, regista-se também: “Como quer que seja, Albano de Jesus Beirão, que se tornou mundialmente conhecido como o ‘Homem-Macaco’, nasceu e viveu nesta região, aqui arrastou o seu drama ingente, a estranha doença que, como dizia a sua pobre mãe, ‘era uma doença que ninguém mais tinha’.”
Há ainda muita gente que se recorda desta personagem estranha, gente natural de Mêda, de Trancoso, de Foz Côa, desta região, enfim. Muitos o viram, por aqui também, nos seus espantosos “trabalhos”. Não desapareceu, por isso, da nossa memória coletiva a estória deste homem singular, mas o caso do Albaninho corre o risco de se transformar num “mito”, à medida que os anos vão passando. E, com o decurso do tempo, aumenta, igualmente, o número dos incréus…
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“Os mais velhos, os que tenham mais de 80 anos, poderão lembrar-se dos seus feitos. Morreu com 94 anos, em 1976, há 27 anos. Se fosse vivo teria agora [em 2004] para fazer nada menos do que 122. Era um homem de estatura menor que a média, bem encorpado, simpático, cara redonda e franca, consciente da sua humildade, de caráter eminentemente beirão, mas deixando sobressair, de quando em vez [de vez em quando], uma certa consciência de que era, na sua infelicidade, uma pessoa invulgar. Nasceu em 1882, na freguesia do Aveloso, concelho da Meda, ao lado da Ribeira Teja, cujas paisagens tanto embelezam a povoação. Puseram-lhe o nome de Albano de Jesus. Seu pai era das Astúrias, Espanha, donde tinha fugido e onde tinha apanhado gases num movimento revolucionário. Sua mãe ficou viúva, pouco tempo após o nascimento da criança e voltou a casar. A família, simples, vivia do amanho dos campos”, desenvolvia-se na mesma edição (n.º 6, em 2004) da revista municipal Côa Visão.
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Fátima Mariano, em entrevista ao Lifestyle, a 7 de setembro de 2022, a propósito do seu livro “Grandes Figuras Excêntricas da História de Portugal: Histórias Bizarras de personagens reais desconhecidas”, publicado pela Editora Contraponto (2022), referiu que esta é uma das histórias que a tocaram, “pelo sofrimento envolvido”, a do “Homem-Macaco, do Aveloso, que chegava a ser violento, “quando acometido dos estranhos ataques e que, quando regressava ao seu estado normal, sentia culpa e sofria pelo comportamento que tinha tido”. Porém, como outras histórias, tem esta “um outro lado, que é o da superação, apesar dos obstáculos, o da solidariedade e o da compaixão”.
Diz Fátima Mariano haver “quem considere que a história de Albano de Jesus Beirão, o “homem-macaco de Aveloso”, inspirou Edgar Rice Burroughs a criar a personagem Tarzan”, mas que não encontrou nada que sustente esta teoria.

– ifestyle.sapo.pt)
Todavia, José Franco aponta que, no livro “Serpa Pinto e o Apelo de África”, a embarcação leva a bordo um inglês Henry Mortan Stanley, que era repórter a soldo americano, a cargo do jornal New York Herald, jornal dos Estados Unidos da América (EUA) que existiu entre 1835 e 1924, que foi, sem dúvida, o primeiro americano a vivenciar (ou lhe foi contado pelo explorador) os delírios de Albano Beirão, junto com o militar e explorador Serpa Pinto.


1900). (pt.wikipedia.org)
Stanley realizou as suas expedições por África (uma delas com Serpa Pinto, o primeiro português a atravessar África a pé), à procura de outro explorador mundialmente famoso, nessa altura, Livingstone, que tinha sido dado como morto.
De notar que Serpa Pinto é natural de Tendais (Viseu), muito perto de Aveloso (a cerca de 100 quilómetros). Lá, a história seria conhecida, de certeza. Seria assim que o novelista Edgar Rice Burroughs (lançou o livro “Tarzan of the Apes”, em outubro de 1912) teria tido conhecimento da história incrível do português fantástico. A expedição é real e é narrada e confirmada no livro “Stanley”, de Frank McLynn (29 de fevereiro de 2012), confirmando a envolvência de ambos.
Voltando a Fátima Mariano, ressalta uma figura, no seu livro, que impressiona pela longevidade – morreu aos 92 anos (outros dizem 94 anos: quem refere 92 baseia-se no assento de batismo, segundo o qual Albano Beirão nascera em 1884 – muitos pais, aquando do batismo, falseavam a data de nascimento para não pagarem multa, por atraso) –, não obstante a sua vida tumultuosa.
Trata-se de o “Homem-Macaco”, do Aveloso.

Macacos” é um romance escrito por Edgar Rice
Burroughs, o primeiro de uma série de livros sobre
o personagem-título Tarzan. (pt.wikipedia.org)
Diz a entrevistada e autora: “Albano de Jesus Beirão foi assim apelidado [de “homem-macaco”] pelo jornal O Século por ser vítima de misteriosos ataques, que o transfiguravam. Durante os ataques, que tanto podiam durar minutos como horas, guinchava como um animal, corria de gatas, trepava a edifícios e monumentos e dava saltos como se tivesse molas nos pés. Juntava-se sempre uma multidão à sua volta e, por vezes, registavam-se feridos. Quando regressava ao seu estado normal, ele não se lembrava de nada. Chegou a ir às redações pedir aos jornalistas que apelassem a que o povo não se juntasse à sua volta, quando estivesse a ter um ataque, porque não queria magoar ninguém. Por iniciativa do governo [outros atribuem a iniciativa à Fundação Calouste Gulbenkian], foi visto por médicos de várias nacionalidades e a tese mais consensual era a de que sofreria de epilepsia nervosa e licantropia. Os ataques duraram cerca de 47 anos. Devido à doença, nunca conseguiu permanecer num emprego. Sobreviveu, graças a uma pensão estatal e à caridade. Viveu uma vida de grande sofrimento.”
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Maria de Lurdes Ferreira era sobrinha, em segundo grau, de Albano Beirão. Quando nasceu, o tio já não sofria da doença desconhecida, mas assegurou que conhecia de cor as suas aventuras, pois a mãe deixou-lhe de herança as histórias. “Havia muitas pessoas que tinham medo dele, mas eu não, nunca me fez mal nenhum.” Pediam-lhe para fazer qualquer coisa, “para nós vermos”, mas declinava, dizendo: Agora não. O Estado já me dá mais ou menos o que eu quero.”

Maria de Lurdes ouviu contar que ele fora uma vez para África e que o deitaram fora do barco, mas que passara por baixo das águas até ao destino. Lá combateu com leões, sem ficar com qualquer ferimento. E relembrava: “Contam que andara aos coices a umas bestas que estavam presas na Meda e que subia ao pelourinho com a cabeça para baixo e as pernas para cima e que, quando chegava ao cimo, fazia um pino. Levantava-se e andava só com a roupa interior, em ceroulas, e nunca rompeu a roupa. Havia um cabeço chamado a Fonte Nova, que tinha covas de raposas. Ele metia-se lá dentro, tirava de lá as raposas e as crias e ficava lá sem medo nenhum. Para sair, é que era o problema, quando os ataques terminavam. Às vezes, não tinha outro remédio, senão esperar que o mal regressasse, para ter coragem de sair e enfrentar as feras.”
A sobrinha, quando ele morreu, tinha 37 anos e ainda se lembra de que o caixão vinha selado e escorria sangue. “Tenho, cá para mim, que ele não veio no corpo natural, porque ele sempre disse que tinha vendido a cabeça aos alemães, para continuarem a estudá-lo”, considerou.

Silvina de Almeida foi vizinha do Albaninho e é a pessoa que mais sabe dos feitos dele. “Ficava tal qual um galgo, não conhecia ninguém, galopava e dava uivos de estarrecer qualquer pessoa”, recordou, assegurando que “era muito asseado”. Quando lhe davam os ataques, “bebia toda a água que lhe dessem, em gamelas e baldes, limpa ou suja”. E, quando terminavam os ataques, “limpava-se todo, esmerava-se de baixo para cima”. A sua figura provocava receio nas pessoas. “Nunca ninguém se virou contra o homem, todos os respeitavam, sobretudo, com receio”, diz a vizinha, que deixou de o ser, quando foi estudar para Coimbra.
Quando regressou, já ele não tinha qualquer ataque. Durante a sua ausência, o Albaninho casou e teve duas filhas: a primeira foi para um asilo, em Lisboa, onde morreu; a outra foi levada pela mãe, quando esta fugiu. E o “homem-macaco” ficou sozinho. Terá sido por isso que cessaram os ataques tão frequentes.
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Enfim, uma força da Natureza!
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Fonte:
Maria João Silva, in blogue “Os Ceireiros”, Beselga, 2011.
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27/02/2025