Iliteracia digital
(Imagem de domínio público gerada por IA)
O que seria de nós – e da sociedade em geral – sem a capacidade de acedermos a todo o tipo de informação com um simples toque num ecrã, sem a possibilidade de comunicarmos e de interagirmos com qualquer pessoa em qualquer parte do Mundo? Ou sem o conforto de agora podermos levar a bom porto e em prazo reduzido tarefas que, há pouco tempo, nos ocupariam meses ou que seriam consideradas muito complexas ou de impossível execução? O que seria de nós sem as tecnologias que, nos nossos dias, suportam, sem exceção, todos os setores da vida contemporânea?
Ao longo da História da Humanidade, a promessa de qualquer nova tecnologia sempre foi a da libertação: do esforço, da lentidão, da incerteza. As tecnologias da informação e comunicação não são exceção. Pelo contrário, estão a levar essa regra a um extremo nunca experimentado. A cada ano, surgem novas ferramentas, novos dispositivos e novas aplicações que prometem facilitar a vida, bem como ampliar as nossas capacidades e ligar-nos, constantemente, ao mundo, seja ele real ou virtual. Ninguém pode já viver sem ter algum grau de literacia digital. No mundo em que vivemos, já não existe lugar para infoexcluídos.
No entanto, apesar do progresso fulgurante potenciado pelas modernas tecnologias, começam a surgir sinais preocupantes sobre o seu impacto negativo nas capacidades cognitivas humanas. Esse impacto faz-se sentir de forma insidiosa, progressiva, muitas vezes impercetível, mas profundamente transformador.
Estudos recentes apontam para uma correlação entre o uso excessivo de tecnologias digitais e uma diminuição da capacidade de concentração, de memorização e de pensamento crítico. Aquilo que deveria ser um instrumento de expansão do conhecimento está, paradoxalmente, a promover uma certa forma de “atrofia cognitiva”. O cérebro, moldado pelo uso intensivo de interfaces digitais, está a adaptar-se a ambientes de distração constante, de resultados imediatos, de superficialidade informativa.

Hoje, muitas crianças e jovens adultos têm dificuldade em fazer operações mentais simples, ler mapas, orientar-se num espaço desconhecido, ou mesmo determinar as horas num relógio analógico. Esta realidade, que, à primeira vista, parece caricata, revela uma alteração profunda: a crescente desadequação de uma parte significativa da população para lidar com aspetos básicos da vida quotidiana. A este fenómeno poderíamos chamar, sem ironia, “iliteracia digital”, não no sentido clássico de não saber usar tecnologia, mas, sim, no sentido inverso: ser-se incapaz de agir no mundo real, precisamente por causa da dependência da tecnologia. São, cada vez, em maior número os indivíduos tecnologicamente dependentes, que perdem competências fundamentais para interagir com o mundo real, físico, direto. Em vez de expandir a autonomia humana, em muitos casos, as tecnologias estão a provocar uma regressão funcional, uma espécie de “desaprendizagem” silenciosa.
A alternância constante de estímulos, a superficialidade dos conteúdos e o fluxo incessante de notificações reduzem drasticamente a nossa capacidade de atenção e de retenção. O cérebro, habituado a lidar com fragmentos de informação curtos e apelativos, perde gradualmente a aptidão para se concentrar em tarefas mais exigentes, como ler um livro, manter uma conversa desafiante ou resolver um problema complexo.

A disponibilidade permanente dos assistentes digitais, das sugestões automáticas, dos mecanismos de correção, dos sistemas de navegação e da inteligência artificial reduz o esforço necessário para pensar. As decisões são delegadas nas máquinas, os erros são corrigidos automaticamente ou sem qualquer tipo de reflexão (ou seja, já não se aprende com os erros), a memória é externalizada para motores de busca. A consequência é uma erosão lenta, mas progressiva, da capacidade de resolver problemas, de insistir perante as dificuldades, de raciocinar com profundidade.
Ainda que estes efeitos afetem a generalidade das pessoas, mais inquietante ainda é o facto de eles serem mais notórios nas faixas etárias mais jovens. As crianças e os adolescentes de hoje estão a crescer num ecossistema digital quase total, muitas vezes, antes de terem desenvolvido plenamente as bases do pensamento lógico, da linguagem e da atenção. Vários estudos neurológicos indicam que o uso excessivo de ecrãs, especialmente em idade precoce, pode interferir com o desenvolvimento saudável de funções executivas essenciais, nomeadamente aquelas que nos permitem planear, avaliar e manter o foco em objetivos complexos.

Isto não significa que devamos rejeitar a tecnologia. As suas vantagens são inegáveis e a sua presença é indispensável e irreversível. A tecnologia é uma ferramenta poderosa e, como toda a ferramenta, o seu valor depende do uso que dela se faz. A questão essencial é a de encontrar um equilíbrio entre os benefícios de utilização das tecnologias e os seus inconvenientes. Precisamos de reaprender a viver com a tecnologia sem nos tornarmos prisioneiros dela. Isso implica cultivar o pensamento crítico, estimular a atenção profunda, praticar a reflexão e a ponderação, assim como valorizar o contacto com a realidade sensorial, física, humana.
A literacia do século XXI deveria, portanto, incluir duas dimensões complementares: a competência para usar a tecnologia de forma inteligente e crítica, e a preservação (ou reaprendizagem) das capacidades cognitivas e práticas que nos permitem existir num mundo sem mediação constante. Precisamos, urgentemente, de um humanismo digital: um modelo de educação e de cultura que reconheça o valor da tecnologia, sem abdicar da complexidade e profundidade do ser humano. Reintroduzir práticas como a leitura em papel, o cálculo mental, a escrita manual, a observação direta da Natureza, a par do diálogo presencial, pode parecer anacrónico; mas é, na verdade, uma forma eficaz e inteligente de educação, que nos permite recuperar a centralidade do ser humano, em detrimento da predominância das máquinas.
Ter acesso instantâneo a qualquer informação é uma conquista. Porém, entender, selecionar e refletir sobre essa informação continua a ser uma tarefa exclusivamente humana. Só isso nos poderá proteger da iliteracia digital.
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03/07/2025