Isto não é mesmo o Bangladesh: é uma perfeita metáfora (lá isso é!)
(Créditos fotográficos: Max Fischer – pexels.com)
“A minha mãe é prof de Português. Numa aula do 8.º ano, um aluno brasileiro colocou uma dúvida. De fundo, ouviu-se o comentário: ‘Isto não é o Bangladesh’. Miúdos de 13 anos. 8.º ano. Numa aula. Este é o impacto.”
Este depoimento abre uma das mais recentes publicações do perfil Volksvargas sobre a xenofobia nas escolas em Portugal e chama a atenção para a força da metáfora de um dos cartazes que André Ventura espalhou pelo país, ao lado de sua própria imagem. Muitos jornalistas e comentadores, ao criticarem a evidente incitação ao ódio a esses imigrantes, empenharam-se em demonstrar que os bengalis estão longe de representar a maioria da população estrangeira no país. Pelos dados oficiais de 2024, que contabilizam os imigrantes em situação legal, eles estariam num longínquo sexto lugar, somando 55199 pessoas, contra 484596 brasileiros, que lideram a lista.

Mas isso não é o que importa. Para começar, a “prova dos factos”, à qual se dedicam as agências de “fact-checking”, tem muito pouco efeito para confrontar a propaganda. O que importa é o impacto, como conclui o depoimento citado acima. Afinal, por que um menino reagiria daquela forma a uma pergunta de um colega brasileiro? Porque incorporou o sentido simbólico da frase. “Isto não é o Bangladesh” é uma metáfora para a rejeição ao indesejável.
Uma outra forma de dizer “volta para a tua terra”, ainda que, aparentemente, visando a um alvo específico, aquele que foi exposto em dezembro do ano passado na operação policial na Rua do Benformoso, no Martim Moniz, em Lisboa, quando dezenas de imigrantes, a maioria bengalis, foram postos contra a parede para serem revistados, numa situação em que, mais uma vez, está em causa o impacto da imagem que os associa ao crime.

No dia 10 de novembro, um menino de nove anos, que já vinha sendo hostilizado e agredido por colegas na sua escola, em Cinfães, teve dois dedos decepados depois de os colegas terem fechado uma porta entalando a sua mão. Podia ser mais um episódio de “bullying”, embora especialmente violento? Poder, podia. Mas o facto de o menino ser brasileiro pode não ser apenas um detalhe. E, ainda por cima, negro.
No último capítulo do livro que investiga a formação, a organização e a actuação do partido Chega (CH), o jornalista Miguel Carvalho mostra como o partido consegue penetrar nas escolas e seduz os adolescentes. Numa entrevista em Outubro, ele relatou que, numa simulação de voto numa escola importante do Porto, o Chega ganhou as eleições entre os alunos. “Isto é um lastro que está a aumentar… não estou a dizer que o Chega é responsável por isto, mas criou-se um clima de agressividade e de violência simbólica nas escolas que faz com que em muitos casos apareçam miúdos inclusive já a fazer a saudação nazi”. A imprensa já publicou inúmeras fotos de adolescentes a fazerem “selfies” com André Ventura ou com Rita Matias, em que se nota, invariavelmente, o brilho nos olhos, o entusiasmo, a confiança, a energia e a disposição para o combate.

Os depoimentos selecionados no vídeo do Volksvargas atestam essa adesão: “Os meus filhos gémeos dizem que os colegas de turma passam a vida a dizer: ‘Isto não é o Bangladesh’. Os miúdos são o reflexo, não só mas também, do que ouvem e vivem em casa.”
“Sou professor de E.V. [Educação Visual] do 8.º ano. É assustadora a quantidade de miúdos que ouvi a cantarem o refrão dessa música [‘Isto não é o Bangladesh’] em diferentes turmas. Sem contar as constantes imitações em escárnio do sotaque cigano”.
“Oitavo ano? Eu já ouvi numa turma de quinto ano. Miúdos de 9/10 anos…”
“A minha filha[,] que tem 13 anos e anda na escola em Lisboa[,] também relata que os colegas (rapazes) estão sempre a gritar ‘chega’ em tom de cântico. Nos intervalos, nas aulas…”
“Por aqui foi uma professora que disse a um aluno ‘volta para a tua terra’ na semana passada. Vamos fazer queixa.”

“Sim, sou mãe de um adolescente de 14 anos, aluno do 10.º ano e é verdade [que] os alunos repetem frases xenófobas do partido CH e gritam ‘Chegaaaaa’ por tudo e mais alguma coisa, principalmente nos corredores, após o toque de saída. O ano passado[,] tive de reportar o comportamento atípico de uma professora que, constantemente, enaltecia o partido e convencia os alunos de que os pais tinham de votar no Chega para o bem do país. Depois a doutrinação é comunista…”
Na primeira epígrafe do seu livro “Por Dentro do Chega”, Miguel Carvalho cita uma cena do famoso filme de Ingmar Bergman “O Ovo da Serpente” (“The Serpent’s Egg”, de 1977) em que se detalha como se choca o ovo. Mas, na sequência desta, há outra cena muito significativa, já no final do filme, em que o inspetor alemão apazigua o protagonista, internado num hospital a recuperar do trauma que sofreu. Em tom triunfalista, ele desdenha dos nazis, que haviam fracassado na tentativa de dar um golpe de Estado: “Herr Hitler e o seu bando subestimaram a força da democracia alemã.”
No dia 25 de Abril de 1974, a poesia saiu à rua. Mas a famosa cadela, que está sempre no cio, deu novas crias.
Estes versos da canção “Lá Isso É”, de Sérgio Godinho, encerram a sequência de depoimentos no vídeo do Volksvargas: “O fascismo é uma minhoca / Que se infiltra na maçã / Ou vem com botas cardadas / Ou com pezinhos de lã […]”
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20/11/2025