“Late Night with the Devil”
A última sexta-feira estava propícia para calafrios e horripilação: era a última “sexta-feira 13” de 2024. De algumas décadas para cá, o fatídico Dia do Azar foi alterando o seu sentido ao se relacionar, cada vez mais, com o imaginário coletivo do género cinematográfico de terror, talvez por conta do grande sucesso das franquias de slasher movies dos assassinos Jason Voorhees, no “Friday 13th”, ou de Michael Myers, com “Halloween”. Mas, o que me trouxe arrepios foi um outro contexto.
“Vamos tentar comunicarmos com o Diabo… Mas, antes, uma palavrinha dos nossos patrocinadores”, dizia Jack Delroy (David Dastmalchian), o célebre apresentador do programa noturno “The Night Owls”, em “Late Night with the Devil”, tentando atrair a atenção através do puro sensacionalismo. Essas poucas palavras dão uma breve noção do que nos espera neste filme de terror sobrenatural, escrito e realizado pelos irmãos Colin e Cameron Cairnes, envolvendo seis produtoras internacionais dos Estados Unidos da América (EUA), da Austrália e dos Emirados Árabes Unidos.
O filme é apresentado como se fosse um documentário verídico acerca dos eventos, envolvendo o último episódio do espetáculo comandado por Jack Delroy, numa espécie de found footage. Na sua trama, após alguns anos de batalha contra o programa de Johnny Carson pela audiência, Delroy vê-se no meio de problemas pessoais, com o adoecimento e posterior morte da sua amada esposa, Madeleine. Ele desaparece durante um mês, fazendo uma imersão no The Bohemian’s grove, um grupo elitista secreto muito afeiçoado às artes ocultas e místicas. Quando retorna às telas, tenta, desesperadamente, conquistar o telespectador para evitar que a rede de televisão UBC cancele o programa por baixas na audiência.
Jack tem a grande ideia de fazer um especial de Dia das Bruxas, com diversas atrações surpresas. Entre elas, está Lilly D’Abo (Ingrid Torelli), única sobrevivente do incêndio na Igreja de Abraxas, uma seita diabólica comandada pelo seu pai, Alexander D’Abo (o nome não é nem um pouco gratuito, pelo contrário, escancara o óbvio). Lilly – nome que parece remeter à Lilith, uma figura demoníaca da mitologia judaica e mesopotâmica – diz que, após as ritualísticas arcanas que culminaram na morte da sua família e de membros do culto, o demónio acabou por hospedar-se no seu corpo. Ela é acompanhada pela Dra. June Ross-Mitchell (Laura Gordon), parapsicóloga que assumiu a sua guarda, pensando no seu exorcismo e subsequente tratamento. Essa aparição em televisão aberta terá consequências impressionantes para Jack Delroy, bem como para os seus convidados, para a sua equipe de produção e – principalmente – para o espectador do filme.
Veja bem, vim de um país em que pudemos ver Chico Xavier, um médium espírita, ir a público em horário nobre para responder questões sobre universos sensíveis que não estão à luz das nossas vistas. Da mesma forma, tínhamos acesso a figuras como o padre Quevedo, um investigador paranormal que tentava desvendar os mistérios e falcatruas envolvendo o ocultismo no Brasil.
Inclusive, entrevistas com o Diabo já aconteciam seguidamente por lá, quando Jô Soares entrevistava José Mojica Marins, o Zé do Caixão, o ator e cineasta, considerado “pai do terror” brasileiro. Para mim, algo assim não é nenhuma novidade e poderia, realmente, ter acontecido na televisão norte-americana. Eu acreditaria. “The Night Owls”, inclusive, consegue criar toda uma ambientação dos famosos talk shows norte-americanos dos anos 70, com uma banda própria, um mestre de cerimónias e uma plateia engajada e participativa, tal qual vemos nos programas de David Letterman ou de Jimmy Fallon, hoje, nas suas versões atualizadas.
Mas, este filme não almeja com todas as suas forças ser a nova “Bruxa de Blair”, um falso documentário, uma produção que tenta enganar-nos pela sua grande verossimilhança. Apesar da boa contextualização histórica, apoiada em imagens documentais reais de eventos da altura, e da inserção de falas bem relacionadas com o momento sociopolítico dos EUA, em 1977 – como é o caso dos comentários ao presidente Jimmy Carter, antevendo o Caso Watergate –, o filme vai se esquecendo desses recursos no decorrer dos eventos.
O ponto que mais me incomodou, sobre essa questão, foi o recurso das imagens dos bastidores. Toda a vez em que o programa de TV entrava no seu intervalo comercial, adentrávamos no universo por detrás das câmaras, as relações interpessoais entre produtores e convidados, as suas conversas sigilosas, etc. A proposta, honestamente, tinha tudo para ser ótima, mas, quando posta em prática, não demonstrou a sua força. Primeiramente, consideramos que o documentário tenha sido feito com cenas encontradas em arquivos documentais extraoficiais. Tornou-se antinatural a presença de várias câmaras, nunca filmando umas às outras, todas capturando minúcias dos diálogos mais íntimos, sempre estando muito próximos das personagens, chegando até a criarem planos e contraplanos, a unidade básica para diálogos em realização audiovisual, sem que ninguém, ao menos, se incomodasse com a sua presença. Fiquei questionando: “Quando é que alguma personagem vai fugir ou interagir com a câmara?” E nada acontecia. Elas, simplesmente, pareciam nem estar lá. Ou seja, os irmãos Cairnes usam o found footage para invocar um senso de realidade, mas não sustentam isto até ao fim, atrapalhando a manutenção da suspensão da crença. Que, na realidade, poderia gerar mais engajamento.
No entanto, a interpretação de David Dastmalchian, como Jack Delroy, de Ingrid Torelli, como Lilly D’Arbo, e de Ian Bliss, como Carmichael Haig, um ex-ilusionista e investigador cético que tenta revelar os artifícios por trás das fraudes, reequilibram esta balança. David encarna muito bem o astro da televisão que tem o controlo do público nas suas mãos, quando à frente das câmaras, ao passo que demonstra as suas vulnerabilidades e ambições, quando está por detrás das coxias. Já Ingrid conseguiu criar uma presença efetivamente perturbadora, alternando entre a inocência e a insanidade.
É imprescindível considerar que boa parte da conexão que o espectador pode fazer com o filme está intimamente ligada à sua quebra da quarta parede, que rapidamente se torna um artifício poderoso, aqui. A personagem olha direto para a tela e, em alguns momentos fala diretamente connosco, agradecendo que nos tenhamos juntado a eles naquela comunhão quase religiosa. Não importa para qual câmara é feito o corte, ela está sempre olhando diretamente para nós de maneira congelante – e isso importuna! Após um tempo, não há como não ficar incomodado com o seu olhar, e este é, definitivamente, um dos mecanismos que melhor funciona no filme.
Um processo parecido acontece com Carmichael. Como a sua função no programa é tentar desmascarar as eventuais artimanhas de possíveis falsários, ele mesmo acaba por protagonizar algumas das cenas mais visualmente inquietantes do filme. Ele usa um relógio para hipnotizar Gus McConnell (Rhys Auteri), o assistente de palco do show, toda a plateia e os espectadores, nas suas casas. Nos compenetramos com a sua orientação e, pouco a pouco, somos surpreendidos por situações que nos fazem pular da cadeira e até virar o rosto, em escárnio – espero não lhe ter trazido spoilers, caro leitor, mas mais vontade de assistir ao filme.
O filme todo depende, intrinsecamente, de toda a ambientação e suscetibilidade que é gerada em nós. Há um movimento contínuo de alternância entre crença e descrença, que é o que nos segura na poltrona até ao final do filme. De um lado, temos Lilly levitando amarrada na cadeira, com a voz alterada e falando de forma sobre-humana. De outro, o próprio Carmichael fala com o público constantemente e somos muito vulneráveis às sugestões mentais e visuais que chegam até nós. Com isso, permanecemos abertos à possibilidade de estarmos verdadeiramente na presença do Diabo. Mas, como não temos a certeza, a dúvida nos mantêm de “orelhas em pé”.
A produção toda foi feita no mesmo cenário, um estúdio de televisão, com poucas imagens de registro documental e externas, gastando à volta de 15 milhões de dólares, um valor consideravelmente baixo para os padrões hollywoodianos. Apesar de toda a sensação aterrorizante que o filme nos gera, certamente ele se aproveita disso para – como os bons filmes trash – também gerar humor. Há, aqui, referências bem claras: a “O Exorcista”, de Willian Fredkin, principalmente nos momentos em que Lilly está possuída; a “Scanners”, de David Cronenberg, no que tange aos efeitos especiais corporais e aos cartazes de divulgação; e – acredite, se quiser – aos “Caça-Fantasmas”, com os jogos de luzes e raios que se assemelham muito aos do filme dos anos 80.
O filme foi produzido em 2023 e vem adquirindo uma boa recepção nos festivais de cinema por onde passa e, talvez por isso, esteja sendo lançado de maneira gradativa. A obra recém-chegou às salas de cinema portuguesas, um ano após a sua estreia –, o que pode estar sinalizando um grande êxito. Assim, por mais que o leitor possa ter perdido a oportunidade de assistir ao filme com toda a conjectura de uma sexta-feira 13, mesmo assim, aconselho bastante que não perca as próximas exibições na Casa do Cinema de Coimbra. Afinal, você não precisa de esperar pelo próximo Dia do Azar ou Halloween para amplificar a sua experiência, tal como eu fiz. Tenho a certeza de que “Late Night with the Devil” vai deixá-lo de cabelos em pé, mesmo assim!
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16/12/2024