Mark Cousins: “O Meu Nome É Alfred Hitchcock”
No parco panorama cinematográfico exibido nas cidades do Porto e de Vila Nova de Gaia, o filme destoa pelo desafio deixado ao espectador na escolha de um cinema de arte, em oposição aos blockbusters. Esta fita é um belo filme que analisa parte – pois, não pode ser pretensioso para toda a obra – do mestre do suspense.
Em capítulos quatro ou cinco, e sob o olhar de uma jovem espectadora, o realizador convida-nos a repensar algumas das suas personagens, nas quais reconhecemos os actores consagrados que as interpretaram na tela, entre eles Gary Grant, James Stewart e, no naipe feminino, não podia faltar Grace Kelly nem a bela Tipi Hedren.
No primeiro capítulo, que o autor chama “A fuga”, não se fala apenas das fugas e das correrias das personagens de Alfred Hitchcock – é notável a fuga de Gary Grant num campo de milho deserto, perseguido por uma avioneta –, senão que se fala da própria fuga do realizador, desta vez de Alfred, da Inglaterra para os Estados Unidos da América. E, para a sua primeira realização num novo território, a célebre obra cinematográfica “Rebecca” (de 1940). Sobre este filme haveria muito de que falar, primeiro que foi uma obra concebida pelo seu produtor David Oliver Selznick, que reuniu actores, produtores e toda uma equipa que ajudou a consagrar este filme como um dos grandes da obra de Alfred Hitchcock, para não falar da acusação de plágio a Daphne Du Maurier, pela autora brasileira Carolina Nabuco e da sua obra “A Sucessora”, de 1934.
O filme “O Meu Nome É Alfred Hitchcock”, de Mark Cousins, é um documento e é, precisamente, nisso que está um dos seus maiores acertos: um documento de trabalho sobre a obra de um realizador que admira, sem dúvida, e do qual nos dá o seu próprio olhar, em cumplicidade sempre com o olhar do realizador inglês. Note-se a recorrência ao plano de rosto de Alfred Hitchcock e das imagens que deambulam na sua mirada.
A fita é, assim, uma delícia para quem viu a obra de Alfred Hitchcock. E reconhece, nesta vez no ecrã, algo: coisas às quais não tínhamos prestado atenção e que fugiram ao nosso olhar enquanto espectadores. Alfred Hitchcock sempre escondeu qualquer coisa. Ou seja, sempre nos esteve a mentir, sempre gozou com a nossa percepção de espectadores e com o nosso olhar despreocupado de um cinéfilo assíduo, que entra na sala apenas para se entreter ou ter emoções.
Importa revisitar, por exemplo, o olhar de “A Janela Indiscreta”. Acertada e bela tradução para “The Rear Window”, a “Janela das Traseiras” – julgo que Alfred Hitchcock teria gostado desta tradução do seu título original, pois, somos indiscretos no olhar, “voyeurs-espectadores”, tal como o personagem interpretado por James Stewart (L. B. Jeffries), prostrado na sua cadeira por causa de um acidente, com uma perna partida e a sua indiscreta câmara fotográfica. E, repetidamente, o humor de Alfred Hitchcock, quando o protagonista acaba novamente prostrado. Nesta vez, com as duas pernas partidas!
Também o olhar para o passado, em “A Casa Encantada” (“Spellbound”), de 1945 – que, no meu país foi traduzido com o título como “Cuéntame tu vida” –, constitui uma análise freudiana da personagem central interpretada por Gregory Peck, acentuada pela cena onírica idealizada e ilustrada por Salvador Dalí.
O documento/filme de Mark Cousins é, seguindo o espírito hitchcockiano, mentiroso logo desde o seu início. Não vou revelar o final, seria como contar o nome do assassino num romance policial. Utiliza o humor do autor que revelou que o seu pai o tinha enviado à prisão, quando era pequeno. Relato que nunca saberemos se é verdadeiro ou não.1
E porque de cinema se trata, quero também recordar a morte de Vassilis Vassilikos, escritor e diplomata grego. O seu principal romance foi “Z”, publicado em 1966 e que deu origem ao filme quase homónimo “Z – Orgia do poder” (de 1969), realizado por Costa Gavras, realizador greco-francês que os Chilenos tiveram oportunidade de conhecer pessoalmente. O filme foi censurado no Brasil e em vários países, pois denunciava as atrocidades do regime ou ditadura dos coronéis na Grécia (entre1967 e 1974).
Também desaparece dos ecrãs Ryan O’Neal, actor que ficará para sempre vinculado ao êxito de “Love Story” (“História de Amor”), filme romântico de 1970. Nunca mais alcançou maior notoriedade depois desse êxito de bilheteira, até que protagonizou uma das fitas mais belas de Stanley Kubrick, “Barry Lyndon” (em 1975), sobre um arrivista irlandês que tenta imiscuir-se na aristocracia inglesa.
É um filme belíssimo. Foi filmado à luz de velas, esplendoroso em direcção artística e extraordinariamente narrado pela voz de um dos grandes actores ingleses da época: Sir Michael Hordern.
Finalmente, conto que conheci pessoalmente Mark Cousins (nascido em Belfast, no ano de 1965), quando nos visitou, em 2019, na Escola Superior Artística do Porto (ESAP), no âmbito da 16.ª edição da MIFEC – Mostra Internacional de Filmes de Escolas de Cinema, organizada pelo Curso Superior de Cinema da ESAP. Na altura, escrevi para o Jornal Audiência (publicação de Leça da Palmeira) uma nota sobre este evento e acerca da mostra de cinema, na qual integrei o júri internacional do festival.
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Nota:
1 – Quando era criança, o pai de Alfred Hitchcock mandou-o à polícia com uma carta. No balcão, um sargento leu a carta e prendeu-o durante alguns minutos. Depois de o soltar, o agente explicou-lhe que aquilo era o que acontecia a quem fazia coisas más. A partir de então, Hitchcock ficou com pavor a polícias. Isto está narrado no livro “O cinema segundo Alfred Hitchcock”, longa e bela conversa entre Alfred Hitchcock e François Truffaut, em 1962.
21/12/2023